José Costa. Sobre direitos humanos…

José Costa

Um tema instigante, capaz de suscitar reflexões de sentidos diversos, é o que diz respeito à
relação que se estabelece entre democracia, direitos humanos e o ensino social da Igreja. Gostaria
de partir do olhar de um renomado pesquisador americano.

Samuel P. Huntington, cientista político, professor da Universidade de Harvard, em artigo
intitulado The third wave, afirmou que uma terceira onda de democratização, ocorrida após a
segunda guerra mundial, deu-se no âmbito de países culturalmente católicos, tendo sido o
catolicismo mesmo – se não a principal – uma das suas causas determinantes. Em muitos pontos do
globo, diz o professor, a transição de regimes autocráticos para democracias caracterizadas pela
afirmação dos direitos da pessoa ocorreu num campo em que se contrapunham, de um lado, um
prelado católico, de outro, um ditador. Dentre os diversos exemplos citados no artigo, eram salientes
a Coreia do Sul e a América Latina. E, arrematava o estudioso, no pontificado de S. João Paulo II –
que, não podemos esquecer, vivera a experiência do fechamento político na Polônia – a luta contra
o autoritarismo passou ao palco central da Igreja. Uma alocução do Santo Padre, por ele transcrita,
respalda a conclusão: “Não sou um evangelizador da democracia, dizia S. João Paulo II, sou um
evangelizador da Palavra de Deus […] À Palavra de Deus pertencem todos os problemas dos
direitos humanos; e se democracia significa direitos humanos, ela também pertence à mensagem da
Igreja”.

As palavras do Papa, que chegam a reconhecer a existência de um liame entre os direitos
humanos e a mensagem da Igreja, não nos devem causar espanto. Se passarmos rapidamente em
revista os momentos históricos centrais da afirmação dos direitos da pessoa, vamos ver que é bem
assim. A partir da luz que a revelação projeta sobre o homem, chega-se ao reconhecimento da sua
dignidade e, por corolário, dos seus direitos.

Em primeiro lugar, quando Roma impunha a todos – inclusive, aos cristãos – a adoração do
imperador, não foi a fé católica que se opôs a esta pretensão autoritária do poder político? Não era
esta oposição a mais clara assertiva de que existe, no homem, uma dimensão espiritual impassível
de coerção? “A Deus o que é de Deus”, dissera Jesus, e esta sentença findou por produzir, na
história, uma novidade inaudita: suplantou-se o monismo político-religioso antigo e, coligada à sua
superação, apareceu a primeira grande afirmação da liberdade religiosa. O edito de Constantino não
foi que um ato de aquiescência a esta liberdade – o catolicismo somente se transformaria na fé do
Império com o Edito de Tessalônica já no final do quarto século –, e o tratado de Tertuliano, ad
scapulam, do século III, o qual situava o ato de adoração no horizonte da escolha a ser feita pela
pessoa, permanece como um eloquente testemunho da fecundidade do pensamento cristão acerca da
libertas religionis.

Alguém poderia arguir a impertinência de um exemplo relacionado à antiguidade, na
medida em que os direitos humanos correspondem a um fenômeno moderno. Seria necessário dizer
que, no decurso da história, as coisas não surgem do nada. Muitas das novas instituições foram
gestadas ao longo de séculos. De toda maneira, convém sublinhar, entre as teorias que procuram
explicar a hodierna afirmação dos direitos naturais da pessoa, aquelas que situam a sua origem no
âmbito de eventos modernos ligados ao catolicismo. Vejamos. Nas controvérsias que se seguiram às
grandes navegações e descobertas do século XV e XVI, levantou-se a questão de saber se os povos
indígenas tinham direito às terras em que viviam. Chamada a se manifestar sobre este tema, a
Igreja, acolhendo as lições de Francisco de Vitória, na Bula Sublimis Deus, do Papa Paulo III,
adotou, por assim dizer, uma linguagem assertiva dos direitos da pessoa. Tal linguagem se mostrou
muito semelhante àquela posteriormente utilizada em manifestações históricas acerca desses
direitos – conquanto, em muitos documentos modernos, tenha ela passado por uma espécie de
secularização. Dizia o Papa Paulo III: “Esses índios e todas as gentes que chegarão ao
conhecimento dos cristãos, ainda se vivem fora da fé cristã, podem usar de modo livre e lícito a
própria liberdade e do domínio das próprias propriedades (Sublimis Deus, 1537)”. Do ponto de
vista teológico, a afirmação se baseava no fato de que aqueles índios eram verdadeiros homens,
assinalados pela imagem e semelhança de Deus, como tais, destinatários daquele domínio sobre a
criação que o Senhor dera à criatura humana. Do ponto de vista da história dos direitos humanos, o
que se tem aí é uma sorte de subjetivação da ordem natural estabelecida por Deus: da lei natural
(objetiva), chega-se ao reconhecimento de um direito natural (subjetivo) da pessoa. Não é pouco. E
muitos autores veem aí o surgimento do movimento moderno da afirmação dos direitos humanos.

Seria possível continuarmos. Na Divinis Redemptoris, Pio XI discorre sobre aqueles
direitos que se fundam na dignidade pessoal do ser humano, enquanto portador de uma dimensão
material e espiritual, chegando a relacionar explicitamente alguns deles (n. 27). Na Pacem in terris,
S. João XXIII assinala existência de direitos e deveres universais, invioláveis, inalienáveis da
pessoa humana, procurando igualmente identificá-los (ns. 11– 30). Na Centesimus annus, S. João
Paulo II não apenas sinaliza a contribuição da Igreja para o movimento dos direitos humanos no
pós-guerra (n. 21) – aqui, é sobremaneira importante lembrar a contribuição do filósofo francês,
católico, Jacques Maritain, cuja contribuição foi deveras determinante para a obtenção do consenso
em torno da declaração de 1948–, mas também se ocupa de elencar diversos direitos fundamentais
da pessoa: à vida, à família, ao desenvolvimento da própria personalidade, à maturação da própria
inteligência na procura pela verdade, ao trabalho, à educação dos filhos e, principalmente, à
liberdade religiosa (n. 47).

De que nos serve tudo isso? Serve-nos a sentir com a Igreja, a pensar com a Igreja. Dizer
que existem “direitos humanos” equivale a afirmar que a pessoa humana, pela singularidade de sua
condição, porque é imagem e semelhança de Deus, é portadora de uma inalienável dignidade, que
não pode ser vilipendiada por razões de qualquer ordem. Não se sacrifica a pessoa no altar da
política, da economia, da ideologia. É como dizer sempre de novo, nos mais diversos – e adversos –
contextos, “a Deus, o que é de Deus”. Concordamos com isso e com todas as suas consequências.

Nem por isso se pode deixar de reconhecer que o discurso sobre os direitos humanos tem
apresentado certas ambiguidades. Cito rapidamente algumas delas – segundo o meu juízo. Primeiro,
fala-se de direitos, mas quase nunca de deveres. A propósito, Victor Frankl, num comentário
pitoresco e esclarecedor sobre a cultura americana, chega a dizer que se faria muito bem, se, em
contraponto à estátua da liberdade, fosse construída na costa oeste dos Estados Unidos, uma estátua
da responsabilidade. Realmente, direitos e deveres, liberdade e responsabilidade, são temas
correlatos. Disso, porém, pouco se fala. Segundo, os direitos humanos não podem ser a “religião
civil” da humanidade. Não devem traduzir uma gama de convicções valorativas, fundadas numa
mal esclarecida ordem objetiva – às vezes, numa ideia difusa de Deus – destinada a produzir uma
unidade sociopolítica, que, por vezes, atropela culturas e o legítimo exercício da liberdade religiosa.
Enfim, como falar de direitos humanos, para chegar a fins violentamente desumanos? A questão
relativa a um pretenso direito (humano?) ao aborto – que paradoxalmente correspondente à
eliminação de uma vida humana indefesa e inocente – coloca-nos de sobreaviso acerca de tudo
quanto se pode querer denominar de direito humano.

Essas questões lembram-me de um livro do jurista espanhol Javier Hervada. Diante de
ambiguidades como as que foram acima relatadas, o professor espanhol – que escreveu uma teoria
crítica do direito natural – indagava se o problema dos direitos humanos não é também o da sua
desconexão com o conceito de lei natural, à medida que este, implicando o reconhecimento de uma
ordem axiológica objetiva no mundo, proporcionaria a superação de alguns dos problemas acima
somente mencionados. Fica a pergunta… E fica igualmente a questão de saber se é possível resgatar
uma ordem objetiva de valores, sem a referência a Deus, enquanto fundamento último da verdade.

José de Oliveira Costa Filho, leigo casado, cofundador e formador da Associação de Direito Diocesano Comunidade Católica Nova Berith
Cursa teologia pelo Centro de Estudos Teológicos do Seminário Arquidiocesano da Paraíba
Graduado em ciências sociais e jurídicas pela UFPB
Especialista em teoria e filosofia do direito Pela PUC-Minas
Master em direito comparado das Religiões, pelo instituto Direcom, FTL, Lugano, Suíça.
Doutorando em ciências jurídicas privatísticas pela Universidade do Minho.

A “cristianofobia” e o renovado desafio do testemunho

Nestes dias, lembrando-me das aulas de teologia que frequentei na FTL, Faculdade de
Teologia de Lugano, Suíça, ocorreu-me a recordação do professor Hans Christian Schmidbaur, das
suas lições de introdução aos sacramentos. Com gestos vivos, falava-nos o professor dos atos
fundamentais da Igreja: liturgia, diaconia, koinonia e martyria. Essas coisas não passam. Ficam,
para sempre, na vida da comunidade eclesial.

A palavra martyria, por exemplo, significa o testemunho que a Igreja dá de Jesus Cristo.
Algumas vezes, num contexto de paz, noutras, num cenário de perseguição, de sofrimento, de
morte. O testemunho, porém, não cessa, não cessará, até que Ele venha.

Acostumara-me a pensar no grande testemunho que os cristãos deram do mistério do
Senhor, morto e ressuscitado, naquele contexto adverso enfrentado pela Igreja primitiva. Num
quadro em que 98% do Império Romano – ou mais do que isso – era pagão, o autor do Apocalipse
proclamou a visão penetrante que somente a fé lhe podia proporcionar: todos hão de se prostrar
diante de Ti, oh Cordeiro (Ap 15,4)! E não foi assim? O sangue dos mártires tornou-se a semente de
novos cristãos, tal como o dissera Tertuliano, descortinando uma verdadeira lei da história da Igreja.

Impressionou-me, por isso, o fato de S. João Paulo II haver dito que o século XX fora o
dos mártires. A propósito, M. Introvigne, ao mencionar o grande número de mártires cristãos na
história – cerca de 70 milhões – esclarece que 45 milhões foram feitos tais no século XX. No
mesmo artigo, cujo ilustrativo título é “Intolerância e discriminação contra os cristãos. As cinco
maiores ameaças do século XXI”, o autor relaciona, embasado em documento entregue por Bento
XVI a OSCE – Organização para Segurança e Cooperação Europeia –, alguns sinais de uma
crescente intolerância contra o cristianismo. Aqui, detenho-me apenas em um deles.

Aquele enumerado como o quinto risco de intolerância para com os cristãos e de violação
da sua liberdade religiosa em nosso tempo é a assim denominada cristianofobia ocidental. Pasmem!
Mas, é isso mesmo! Essa cristianofobia toma as faces de abolição de festas religiosas, exclusão de
símbolos confessionais do espaço público – sem levar em conta a expressão pública da fé e as raízes
culturais características de uma nação, capazes de lhe dar coesão social – violação da liberdade
educacional – cristãos obrigados a frequentar aulas, que possuem uma concepção da vida e da
pessoa estranha à justa razão e à fé, como se tais concepções fossem neutras – e afronta à liberdade
de opinião e de expressão religiosa. Por pertubador que seja, o rol é meramente exemplificativo.

Para evitar discussões estéreis, digo-o logo, tenho consciência de que as violações à
liberdade confessional tocam, de modo particular, as minorias étnicas, culturais, religiosas, hoje,
também, no mundo digital. O catolicismo não pensa em liberdade religiosa apenas para si. Se
alguém imagina não ser assim, deve ler, com atenção, a declaração conciliar Dignatatis Humanae.
E, permita-me, por favor, a provocação, já com alguns anos (60!) de atraso.

Hoje, entretanto, desejo falar da intolerância que um cristão, somente pelo fato de sê-lo, de
viver e exprimir a sua fé e a moral que lhe é correlata, pode experimentar. Alguém poderia objetar
que isso não ocorre no nosso país. Aliás, é tão corriqueira, quanto elusiva, a afirmação de que, no
Brasil, não há intolerância religiosa. Tudo é pluralidade e harmonia. Mas, será mesmo? Talvez, a
menção a um caso seja bastante, para possibilitar uma perspectiva mais abrangente e uma análise
mais precisa da realidade.

Nos últimos dias, assisti estupefato ao desligamento do preparador físico da seleção
feminina de basquete, o paraibano Diego Falcão, católico, leigo, casado, que publicara um post próvida
em suas redes sociais. Já fizera publicações similares anteriormente. Agora, porém, as
circunstâncias conferiram uma especial ressonância ao seu ato. Como consequência, ele foi
anatematizado por grupos, ao final, afastado da comissão técnica da equipe brasileira. É bom dizer,
tudo motivado pelo exercício regular – inclusive, comedido – de um direito fundamental: a
liberdade de expressão, em sua modalidade religiosa. A censura que lhe foi imposta, porém,
mostrou-se flagrantemente expressiva.

O fato é que a estranhamente apaixonada defesa do aborto é feita com um olho só. Vê-se
tudo, fala-se tudo; só não se menciona o valor da pessoa humana, que silenciosamente vive, ainda
que renitentemente vista como uma coisa, um mero objeto de direito. É preciso dizer, a convicção
religiosa do preparador Diego Falcão – que tinha o direito de exprimir religiosamente a sua opinião,
sobretudo, no âmbito em que o fez – corresponde a uma mundividência razoável, facilmente
traduzível por razões públicas ou juízos impessoais de justificação – falo assim, para adotar a
terminologia própria da teoria política e jurídica, encontrada, por exemplo, em Rawls ou Dworkin.
O tema básico pode ser assim exposto: uma vida humana, pelo fato de ser humana, pela sua
potencialidade, pelo valor que lhe é inerente, merece a tutela do Estado. Nada disso, no entanto, o
socorreu.

O resultado é que José Neto, então técnico da seleção brasileira de basquete feminino,
demitiu-se do cargo. Entendeu que precisava ser solidário ao amigo e fiel às suas convicções e
princípios religiosos. O preparador Diego Falcão, firme em suas convicções, declarou que, como
católico, não poderia ter deixado de se posicionar, razão porque o fez. Não é inócuo dizer que se
multiplicou o número daqueles que o acompanham nas redes sociais. “Falava para doze mil
pessoas, agora posso falar para trezentas mil”, chegou a dizer numa entrevista. E parecia sóbrio –
além do que, claramente comprometido – em sua declaração.

Um cristão, católico, como procura ser, com a graça de Deus, o subscritor deste artigo,
sente o dever de agradecer a todos aqueles que dão de Cristo um testemunho eloquente, em meio às
incompreensões, às lutas, às dificuldades da vida. Esperançoso, pode muito bem recordar a
conhecida sentença de Tertuliano, à qual acima se fez referência. Muito mais, pode se regozijar da
memória do que disse Jesus, aquele cujas palavras vimos cumprirem-se, uma a uma, no transcurso
desses vinte séculos: “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se
morrer…” (Jo 12,24).

José de Oliveira Costa Filho, leigo casado, cofundador e formador da Associação de Direito Diocesano Comunidade Católica Nova Berith
Cursa teologia pelo Centro de Estudos Teológicos do Seminário Arquidiocesano da Paraíba
Graduado em ciências sociais e jurídicas pela UFPB
Especialista em teoria e filosofia do direito Pela PUC-Minas
Master em direito comparado das Religiões, pelo instituto Direcom, FTL, Lugano, Suíça.
Doutorando em ciências jurídicas privatísticas pela Universidade do Minho.

A ternura do amor familiar: o segredo dos pequenos detalhes

O Papa Francisco escreveu uma exortação apostólica com o declarado intuito de fazer
ressoar, mais uma vez, o chamado universal à santidade, situando-o no contexto atual. O título do
documento já nos diz muito: “Alegrai-vos e exultai”! Realmente, se é verdade que não há santidade
sem amor, sem compromisso, sem cruz; verdade é também que ela tem tudo a ver com aquele
projeto de felicidade – profunda, duradoura, paradoxal, sobrenatural – desvelado nas bem aventuranças. E, logo no início, o Papa sublinha uma afirmação conciliar, que calha bem à nossa
reflexão: sem excluir o caráter pessoal do chamado que o Senhor dirige a cada um, recorda-nos que
Ele quis nos santificar e salvar não isoladamente, mas na dinâmica das nossas relações
interpessoais, como comunidade humana. Não sem um pouco de ousadia, quereria dizer: o Senhor
nos quer santificar e salvar como famílias.

Esta é uma convicção que, há muito, acompanha-me. Certa vez, ainda muito jovem,
chamado a falar para casais – não tão jovens quanto eu era – sobre o amor conjugal, propus-lhes o
exemplo da sagrada família. Ao terminar, um dos ouvintes me disse: “Amigo, pense bem no
exemplo que nos deste: Jesus, Maria e José! Logo eles! Não terias um modelo mais perto de nós?”.
A pergunta despertou alguns sorrisos. E fora mesmo apresentada com leveza, bom humor e respeito.
No entanto, como podemos esquecer quanta santidade, quanto amor e ternura, existia na vida
simples da família de Nazaré? Aquela grande caridade, escondida nos pequenos detalhes, na
aparente ordinariedade de uma vida simples, inspirou tantos santos. Se pomos à luz este aspecto, a
santa família de Nazaré parece tão próxima a nós. Nem por isso esquecemos a particularidade do
seu chamado: acolher, no seu seio, o Filho de Deus.

Ainda aí, porém, encontramos uma palavra dirigida às famílias. Falar de uma santidade
familiar, é também voltar-se à família como lugar da formação de santos, de “santos ao pé da
porta”, como disse o Papa naquela exortação apostólica, de uma santidade simplicissimamente
compartilhada no dia-a-dia. Hoje, quanto a isso, ocorre-nos especialmente o exemplo luminoso de
São Luís Martin e Santa Zélia Guérin. A tal respeito, compartilho um texto que me foi enviado por
Andressa Maia, leiga, casada, mãe de três filhos, membro da Comunidade Católica Nova Berith:

“Nestes tempos em que a santidade parece uma palavra estranha, um desejo distante e
incomum no mundo, conhecer um pouco mais da Família Martin, lar de Santa Teresinha do Menino
Jesus, em especial, conhecer a simplicidade, mas, ao mesmo tempo, a força e o testemunho da vida
de Santa Zélia e São Luís, foi uma grande luz para o meu coração e para o chamado de Deus em
minha casa e família.

Zélia era uma mulher de história sofrida, vinda de uma família muito pobre e que enfrentou
grandes privações, inclusive a rigidez de uma mãe distante. Sua história poderia ser motivo de
revolta, mas ela era conhecida por sua profunda intimidade com Deus.
Dois momentos decisivos falam dessa intimidade: a partir de uma moção interior, nascida
da sua vida oracional, Zélia decidiu fundar a fábrica de rendas, da qual tirava o sustento de sua
família e, mais do que isso, onde dava exemplo de santidade no trabalho, respeitando as suas
funcionárias e cuidando delas como se fossem da família. Em outra ocasião, caminhando pela ponte
da sua cidade, avistou Luís. Não o conhecia, mas se sentiu “tocada” pelo Espírito: “Este é o marido
que preparei para você”. O tempo pode mostrar que a intuição fora verdadeira. Dois acontecimentos
destinados a dar frutos, ambos decorrentes da vida de oração de Santa Zélia
Dessa fecunda atitude oracional Luís também compartilhava. Por isso, juntos, transmitiram
essa devoção aos seus filhos, que no total foram 9 (!). Primeiro, como esposos, aprenderam a se
amar, encontrando em Deus a água que fazia a árvore florescer a tempo e alimentava o seu amor
mútuo. E assim como essa árvore, com a chegada dos filhos, passaram a vivenciar uma verdadeira
escola de oração, criando no lar um ambiente saudável, que conduzia todos a crescer em direção a
Deus e ao próximo.

Há muitos escritos de Santa Zélia e, em alguns, me surpreendi com pensamentos
semelhantes aos meus: preocupações com a roupa dos filhos, a sensação de cansaço após um dia
difícil com várias demandas, ou ainda a saudade do marido que viajou a trabalho. São Luís e Santa
Zélia, diante dessas realidades, demonstraram santidade no “calor da hora”: apesar dos desafios,
conflitos e percalços do caminho, tinham a convicção de que seus corações pertenciam ao Senhor,
como na oração que Santa Zélia recitava diariamente com as filhas: “Meu Deus, eu vos dou meu
coração; tomai-o, por favor, para que nenhuma criatura possa possuí-lo, mas somente Vós, meu
Bom Jesus”.

Esse ambiente de amor entre os esposos, de intimidade com Deus, de dedicação ao
sustento da casa, de constante transmissão da fé às filhas através dos exemplos, que, de tão forte,
levou as suas 5 filhas ao seguimento de uma vida religiosa, muito me ensina sobre como
transformar minha casa, assim como o lar dos Martin, em um autêntico lugar de amor e de alegria,
e, também, em um sinal de esperança para os que mais necessitam (reflexões pessoais, baseadas no
livro: Nos passos de São Luís e Santa Zélia, pais de Santa Teresinha)”.

O relato simples, sintético, de alguns fatos da vida de S. Luís e S. Zélia, santos dos quais
hoje fazemos memória, é o que basta, para nos colocar diante daquilo que é deveras mais
importante: a ternura do amor, daquele amor que é a expressão de uma vida santa, traduz-se nos
pequenos detalhes diários. Aliás, exatamente como no Evangelho: o pequeno detalhe do vinho que
estava para acabar numa festa, o pequeno detalhe da ovelha que faltava, da oferta da viúva, do
azeite para a lâmpada. “Guardar os pequenos detalhes do amor, cuidar uns dos outros: eis o espaço
aberto e evangelizador, o lugar da presença do ressuscitado, que nos vai santificando segundo o
projeto do Pai” (Alegrai-vos e exultai, n. 145).
Simples… e verdadeiro!

José de Oliveira Costa Filho, leigo casado, cofundador e formador da Associação de Direito Diocesano Comunidade Católica Nova Berith
Cursa teologia pelo Centro de Estudos Teológicos do Seminário Arquidiocesano da Paraíba
Graduado em ciências sociais e jurídicas pela UFPB
Especialista em teoria e filosofia do direito Pela PUC-Minas
Master em direito comparado das Religiões, pelo instituto Direcom, FTL, Lugano, Suíça.
Doutorando em ciências jurídicas privatísticas pela Universidade do Minho.

O QUE NÃO PODEMOS ESQUECER…

Ronald Dworkin, renomado jusfilósofo, escreveu um livro instigante sobre o quadro político norte-americano:“Is democracy here?”. A obra me marcou, não tanto pelas coisas que ali são ditas – algumas delas, aliás, contam com a minha mais franca discordância – mas pelo propósito declarado do autor: diante de um país dividido por opções políticas conflitantes – falava dos Estados Unidos da América – dividido, dizia, ao ponto de uma iminente ruptura; procurava ele colocar em evidência o motivo que tinham os seus concidadãos para viverem juntos, qual seja, o projeto constitucional americano. Segundo Dworkin, as interpretações divergentes acerca de tal projeto eram admissíveis, por vezes, até necessárias, desde que todos tivessem claro que mesmo as dissonâncias hermenêuticas partiam de um ethos político condividido, a respeito do qual o consenso era indeclinável e que constituía a chave da unidade nacional.

A reflexão do professor ressoou em minha consciência. Diante dela, senti-me um pouco como os ouvintes de Jesus, quiçá, estupefatos – e não era mesmo para menos – ao vê-lo elogiar a argúcia do administrador infiel. Se este pensador norte-americano, ateu – aliás, defensor de uma sorte de ateísmo religioso, caracterizado por uma fé valorial – teve tal apreço pela salvaguarda dos valores que mantinham a unidade do seu povo, o que devem fazer os cristãos? Para evitar todo e qualquer mal-entendido sobre o propósito deste escrito, vou direto ao ponto: diante das múltiplas questões com que diariamente nos defrontamos – família, trabalho, economia, política – nós temos ao coração uma séria atenção pela unidade da Igreja? Lembramos que a Igreja possui um magistério social, que se debruça sobre estes temas? Sabemos que o ensinamento social da Igreja não advém de uma mera preferência filosófica, mas é um capítulo teologia moral, na medida em que parte dos princípios éticos que nos são legados pelo Evangelho? Recordamos que a doutrina social da Igreja se formou a partir das intervenções magisteriais dos Papas, de Leão XIII até Francisco, desenvolvendo-se organicamente, a partir de uma base principiológica que já estava latente na Rerum Novarum, até os nossos dias?

Se se tem notado, recorrentemente e por tantos lados, uma certa perda de sentido, de que se faz acompanhar uma generalizada desilusão com o engajamento social, político e econômico – áreas que solicitam especialmente atuação do laicato – é em boa hora que se pode retomar o estudo da doutrina social católica.

O ensino social da Igreja – que, como já sublinhado, pertence ao domínio da teologia moral católica, em diálogo transdisciplinar com outros campos do saber – desenvolveu-se entre os séculos XIX e XX, a partir de alguns princípios inferidos da Sagrada Escritura e da Tradição, nomeadamente, o princípio da dignidade da pessoa, o do bem comum – dentro qual se insere o da destinação universal dos bens – o da subsidiariedade, o da participação e o da solidariedade, em ordem à realização dos valores da verdade, liberdade, justiça e da caridade, que, para além das relações interpessoais, é igualmente entendida como social e política.

A primeira grande intervenção do magistério da Igreja, dentro desse corpus doutrinário, esteve relacionada ao tema do trabalho e dos problemas suscitados por uma certa compreensão naturalista da sociedade, negatória da relação existente entre ética e economia. A temática foi então abordada na encíclica Rerum Novarum pelo grande Leão XIII. Dentre as muitas fontes de inspiração do Pontífice, gostaria de ressaltar uma em particular: fora seu amigo e conselheiro, o empresário francês Leon Harmel, cuja atuação contribuíra para evidenciar e reforçar a sensibilidade social do Papa. Após o advento da encíclica leonina, Harmel aplicou, à letra, os seus princípios no âmbito de sua tecelagem, na França, ali instituindo salário-família, pensões por ancianidade, conselhos de empresa, entre outras medidas. Passados cem anos da publicação daquela histórica intervenção social do magistério, São João Paulo II pode afirmar que a sua principal chave de leitura era, de fato, a dignidade do trabalhador e a dignidade do trabalho, tema que retomou e desenvolveu na Laborem exercens.

Mais do que isso, porém, firmara-se ali um novo paradigma, a saber: a Igreja tem uma palavra a dizer acerca das realidades sociais, mesmo porque os problemas que aí se apresentam não encontrarão verdadeira solução fora do Evangelho, fora de um autêntico equilíbrio entre liberdade e verdade. Nessa perspectiva, uma vasta gama de questões – velhas e novas – constitui o objeto do ensino social católico: a ambiental, aquela concernente à inteligência artificial, a familiar, entre outras tantas.

Detenho-me, brevemente, ainda sobre uma delas: a proteção à vida humana, desde a concepção até a morte natural. Neste campo, são provocantes, por vezes, avassaladoras mesmo, as discussões acerca do respeito devido à vida humana nascente. No debate travado entre Joseph Ratzinger – então Prefeito da Congregação Para a Doutrina da Fé – e o filósofo italiano Paolo Flores D’arcais, a posição da Igreja era defendida pelo primeiro com as seguintes palavras: “se é uma pessoa humana, tem grande dignidade – falava do nascituro – então, é intocável”(faço aqui uma citação livre da fala do grande teólogo e Papa, incluída no livro “Deus Existe?”, que nos reporta aquela memorável discussão filosófica). Realmente, aqui, porque se toca em “uma questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição” (Papa Francisco, EG n. 214)”.

Trabalho humano e vida nascente. Dois temas que, para alguns, podem parecer distantes, quando, na verdade, não o são. A instrução Dignitas Personae explicita a íntima correlação entre ambos: “Como, há um século, era a classe operária a ser oprimida nos seus direitos fundamentais, e a Igreja com grande coragem a defendeu, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando uma outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental da vida, a Igreja sente o dever de, com a mesma coragem, dar voz a quem não a tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos são ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos”.

Na semana em que celebramos os apóstolos S. Pedro e S. Paulo, a imagem de uma Igreja que se dá as mãos e não esquece dos que mais necessitam da palavra e do cuidado – dos pobres, segundo a perspectiva abrangente do magistério social – é uma referência positiva, para pensarmos as soluções de problemas complexos num mundo de experiências disruptivas, de coisas novas. Não que se excluam diferenças legítimas na interpretação e no trato da realidade, ainda que à luz de uma mesma matriz principiológica. Mas, que tudo se faça sem ameaçar a unidade

José de Oliveira Costa Filho, leigo casado, cofundador e formador da Associação de Direito Diocesano Comunidade Católica Nova Berith
Cursa teologia pelo Centro de Estudos Teológicos do Seminário Arquidiocesano da Paraíba
Graduado em ciências sociais e jurídicas pela UFPB
Especialista em teoria e filosofia do direito Pela PUC-Minas
Master em direito comparado das Religiões, pelo instituto Direcom, FTL, Lugano, Suíça.
Doutorando em ciências jurídicas privatísticas pela Universidade do Minho.

OS LEIGOS NO MAGISTÉRIO DO PAPA FRANCISCO

É comum, na linguagem corrente, o uso do termo leigo, para fazer referência a alguém
desprovido de conhecimentos sobre alguma coisa. Alguém que ignora um determinado assunto. É o
que diz o dicionarista, é o que diz o povo. Aliás, quanto a isso, há uma narrativa pitoresca do Padre
Antônio José de Almeida. Enquanto se dirigia a um certo encontro, numa certa igreja, indagou o
padre a uma senhora sobre o local em que acontecia uma palestra para leigos. E a resposta veio:
“leigos em quê?”. A pergunta se tornou o título do seu livro. Uma abordagem histórica do lugar do
leigo na Igreja.

Como toda a história, esse capítulo particular também é complexo e marcado por
ambiguidades. Desde a conhecida definição negativa de Tertuliano, no século III, pela qual o termo
leigo designava alguém que não recebera o sacramento da ordem, e das restrições que então
incidiram sobre os ministérios laicos, até os milhares de leigos e leigas, homens e mulheres de
Deus, que, de muitas maneiras, contribuíram para a missão da Igreja no mundo.

O fato é que o Concílio Vaticano II revitalizou a compreensão da identidade e da missão
dos leigos. Sobretudo, as Constituições Lumen gentium e Gaudium et spes o fizeram. Mais do que
distingui-los pelo fato de não terem recebido a ordem sacra, o Concílio sublinhou que os leigos são
fiéis, incorporados a Cristo pelo batismo, constituídos integrantes do povo de Deus, participantes da
função sacerdotal, profética e real de Cristo, chamados a exercer, na parte que lhes toca, a missão do
povo de Deus na Igreja e no mundo (LG 31), e a imprimir, mediante as atividades seculares que lhe
são próprias, a lei divina na cidade terrestre (GS 43). Pois bem. Só à luz do evento extraordinário de
graça que foi o Concílio Vaticano II é que se pode compreender o magistério do Papa Francisco
acerca dos leigos.

Já nos primeiros anos do seu pontificado, em 2015, na oportunidade da comemoração dos
50 anos da Apostolicam actuositatem – decreto conciliar sobre o apostolado dos leigos – o Papa
Francisco destacava que a Gaudium et spes e a Lumen gentium consideraram os fiéis leigos dentro
de uma visão de conjunto do povo de Deus, ao qual pertencem em união com os membros da ordem
sagrada e com os religiosos. A partir desta comunhão, relevava o Santo Padre, os leigos têm um
papel próprio a desempenhar na atuação missionária da Igreja, à medida que esta não se encontra,
em absoluto, reservada a alguns “profissionais da missão”. São chamados não apenas à animação
cristã das realidades temporais, mas também às obras explícitas de evangelização, voltadas ao
anúncio e à santificação da humanidade.

Estas duas linhas voltaram sempre a aparecer no magistério do Papa, nas oportunidades em
que ele se pôs a ensinar sobre a vocação própria do leigo na comunidade cristã e no mundo:
comunhão, que, podemos dizer, expressa-se numa dinâmica de sinodalidade, e missionariedade, que
corresponde àquele paradigma eclesial proposto no início do pontificado de Francisco, aliás, com
palavras marcantes: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os
costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal
proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação (E.G. 27)”.

Semelhante perspectiva parece ter atingido um ponto alto no dia 18.02.2023, em discurso
proferido para os membros de congresso promovido pelo Dicastério para os Leigos, a Família e a
Vida. Naquela ocasião, o Papa afirmou que a estrada que Deus está a apontar à Igreja é a de viver,
mais intensa e concretamente, a comunhão, caminhar juntos, qual um povo unido em missão. A
sinodalidade, disse Francisco, encontra a sua fonte e finalidade última na missão. E ressaltou que,
nos momentos de grande renovação e zelo missionário da história da Igreja, encontraram-se juntos
os pastores e os fiéis leigos, como membros deste único povo que evangeliza. A partir daí,
esclareceu que a exigência de valorizar os leigos não deriva de uma novidade teológica qualquer,
nem de exigências funcionais, decorrentes da diminuição das vocações sacerdotais, menos ainda de
reivindicações de categoria. Pelo contrário, baseia-se numa visão correta da Igreja, da qual fazem
parte, a pleno título, os leigos, conjuntamente com os ministros ordenados. Equivale a uma
“eclesiologia integral”, tal como a dos primeiros séculos, segundo a qual, no único povo de Deus, o
elemento fundamental é a pertença a Cristo, a comunhão sobrenatural com Ele e com os irmãos.
Assim, mais do que não-clérigo ou não-religioso, o leigo é um batizado, e o batismo é o sacramento
que abre todas as portas. Somos batizados, cristãos, discípulos de Jesus, o resto é secundário,
sublinhou o Papa. Não se trata aí, obviamente, de obscurecer o sacramento da ordem – aliás, na 72ª
semana Litúrgica Nacional da Itália, o Sumo Pontífice alertou que não acontecesse este malentendido. Trata-se sim de colocar a ênfase na unidade.

À medida que entendemos bem este ensinamento, podemos fazer coro com o Papa
Francisco: nem clericalizar o leigo, nem fazê-lo hóspede em sua própria casa, esclareça-se, na
Igreja. Os leigos são chamados principalmente a viver a sua missão nas realidades seculares, onde
estão imersos dia a dia. Isso, porém, não exclui as capacidades, os carismas e as competências de
que são dotados esses homens e mulheres, habilidades que podem contribuir para a vida da Igreja:
na animação litúrgica, na catequese e na formação, nas estruturas de governo, na administração dos
bens, no planejamento e implementação dos programas pastorais.

Em suma, eis a palavra de ordem do Papa Francisco: leigos e pastores juntos na Igreja,
leigos e pastores juntos no mundo. Dessa maneira, a obra de evangelização, embora sempre
desafiadora, não apenas renderá bons frutos, mas será certamente mais alegre.

José de Oliveira Costa Filho, leigo casado, cofundador e formador da Associação de Direito Diocesano Comunidade Católica Nova Berith
Cursa teologia pelo Centro de Estudos Teológicos do Seminário Arquidiocesano da Paraíba
Graduado em ciências sociais e jurídicas pela UFPB
Especialista em teoria e filosofia do direito Pela PUC-Minas
Master em direito comparado das Religiões, pelo instituto Direcom, FTL, Lugano, Suíça.
Doutorando em ciências jurídicas privatísticas pela Universidade do Minho.