Depois de cinco anos sepultado no mausoléu dos arcebispos na Catedral-Basílica Nossa Senhora das Neves, em João Pessoa, os restos mortais de Dom Marcelo Pinto Carvalheira, 5ª arcebispo da Paraíba (1995-2004), são transladados para a Catedral de Nossa Senhora da Luz, em Guarabira, onde foi o primeiro bispo (1981-1985). Anteriormente, ele havia sido bispo-auxiliar da Arquidiocese da Paraíba (1975-1981), atuando na região polarizada por aquela cidade do Brejo paraibano.
Seu lema era sintetizado na palavra “Evangelizar”, escolhido quando foi ordenado padre, no dia 28 de fevereiro de 1953, em Roma, que passou a ser o ponto central de toda a sua vida de pastor. Sagrado bispo, em 27/12/1975, repetiu com fervor a mesma intenção de continuar a evangelizar como o Bom Pastor ensinou. Novamente, tempos depois, reproduziu esta palavra quando assumiu a Arquidiocese da Paraíba.
No período em que foi ordenado padre e depois sagrado bispo, Dom Marcelo fez surgir os frutos da Palavra de Deus onde foi chamado a atuar. Entre a oração e a ação, mostrou como a pessoa é capaz de anunciar e viver as bem-aventuranças em sua plenitude.
Natural da cidade do Recife (PE), onde nasceu no dia 1º de maio de 1928, filho de Maria Tereza Mendonça e Álvaro Pinto Carvalheira, cedo demonstrou interesse pelo sacerdócio. Foi estudar na Universidade Gregoriana, em Roma, onde, em 1953 é ordenado padre. Voltou para sua terra, onde exerceu as funções de presbítero. Com a chegada de Dom Helder Câmara à Arquidiocese de Recife e Olinda (1964), atuou com mais afinco nas questões pastorais, sobretudo as sociais, e junto à juventude, ao tempo em que coordenava o seminário de formação de novos presbíteros.
O governo militar (1964-1985), sem conseguir emudecer Dom Helder Câmara, perseguiu seus auxiliares mais próximos. Trabalhando diretamente com o arcebispo de Recife e Olinda, foi preso quando participava de um seminário de estudos em São Leopoldo (RS), juntamente com outros padres, entre os quais, o dominicano Frei Beto, acusado de estar no Rio Grande do Sul planejando ações de mobilização popular para derrubar o governo. Passou 51 dias preso, mas nada encontraram contra ele.
Na prisão, mesmo diante da tensão e dos intermináveis interrogatórios, não perdeu a serenidade. Animava os outros presos e, em certas ocasiões, celebrava missa entre eles com os objetos que tinham, de modo que a Palavra de Deus os motivasse a persistir em suas convicções.
No ano de 1975, ordenado bispo-auxiliar de Dom José Maria Pires, foi atuar na área pastoral de Guarabira, com a finalidade de que, em breve, seria transformada em diocese, o que realmente aconteceu em 1980, sendo nomeado seu primeiro bispo, cuja posse se deu no ano seguinte, onde permaneceu até sua ascensão a arcebispo metropolitano da Paraíba, com a renúncia de Dom José Maria Pires.
Nas terras do Brejo
Ao chegar à Paraíba, como bispo-auxiliar de Dom José Maria Pires, deparou-se com um quadro aterrador, principalmente no campo, onde as fontes de trabalho se reduziam devido a um programa governamental de estímulo à pecuária. A mão de obra nos engenhos, que vivia sistema de semiescravidão, tornou-se ainda mais escassa, levando famílias às pontas das ruas. O modo usado pelos donos das terras para se livrar desses trabalhadores era espúrio e deprimente. Nada o intimidou. Sentia a manifestação de fé nas pessoas. Tratou bem os governantes e ricaços, mas sem sujeição. A mão que os cumprimentava era a mesma que erguia na defesa dos oprimidos.
Costumava dizer que, ao chegar à Paraíba, encontrou o “povo crucificado” e era forte a presença da “civilização da pobreza”.
Bispo que ouvia com benevolência e carinho os irmãos que dele se aproximavam. Era como se Jesus falasse com ele na pessoa do irmão sofrido.
Padre forjado nos gestos de Dom Helder Câmara, encantado pela beleza do Evangelho e afinado com as pessoas no convívio da comunidade de fé, Dom Marcelo decidiu recriar entre os homens uma nova Arca da Aliança, porque não se recusou a enfrentar a opressão, mesmo com o sacrifício da liberdade e da vida.
Sua chegada e permanência em Guarabira foi passo decisivo para fomentar a conscientização política e social da população da região, pois reanimou a todos com sua palavra. Apoiou grupos de trabalho que encontrou e os que surgiram, tais como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Centro de Orientação dos Direitos Humanos (CODM), Serviço de Educação Popular (SEDUP), Programa Comunitário de Educação Popular (PROCEP), Associação das Viúvas, inclusive aquelas cujos maridos foram assassinados durante a repressão policial, Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), Movimento de Adolescentes e Crianças (MAC), Fraternidade Cristã dos Docentes e Deficientes (FCD), movimentos como Encontro de Casais com Cristo, Renovação Carismática, Focolare e vários outros grupos pastorais que ajudaram a organizar o povo. Tudo era novidade na região onde atuava.
Durante sua trajetória de bispo, não esmoreceu diante das agonias, fazia de sua ação evangelizadora um testemunho. Em tudo colocou o tempero do amor. Em tudo amava e servia em abundância e no limite de suas forças.
Por quase trinta anos como bispo nas terras da Paraíba, abriu largos horizontes para acolher quem se aproximasse dele, buscou consolo, ergueu os caídos, incentivou a fé com a Palavra de Jesus onde tudo desmoronava, acalmou o ódio entre famílias.
Sua palavra acalmava, contaminava todos, mesmo os mais exaltados. Ficaram famosas as tapinhas carinhosas como cumprimentava quando alguém estava agitado perto dele, ou tocando levemente o rosto das pessoas.
Dom Marcelo foi, a exemplo de outros bispos de sua época, um pastor que tinha sempre a mão estendida aos necessitados, trazendo presentes as bem-aventuranças de Jesus.
No período quando o governo se ausentou da defesa de pessoas que eram dizimadas por milícia armada, ele combateu os infortúnios do povo mergulhado no desespero. Contra a tirania, lutou em proporções estupendas, dando lições de altivez em favor da vida. Sua voz era trovão a estrondar pelos arrabaldes das serras da região onde atuava. Comovia-se vendo a população que mendigava, a esta nunca faltou o abraço terno.
Seu olhar harmonizava os ambientes turvos, quando a lei dos homens imputava opressão, arrastando cordilheiras abaixo seres desprovidos de acesso aos seus direitos. Na Paraíba, em muitos lugares, ainda flamulam seus gestos meticulosos que agitaram mentes e corações na busca de um mundo de paz.
Seu abraço tinha largueza porque continha ternura, amor abnegado e uma forte fé cristã. Nele a fé se agigantava, o plano divino se completava. Quando se recolhia para a oração vespertina, no silêncio da cela ou no oratório da natureza, fazia seu contato supremo com a vida. Em Guarabira construiu um eremitério afastado da cidade; quando esteve na capital, em sua casa fez construir espaço onde pudesse observar a imensidão verde do Rio Sanhauá.
Com Padre Ibiapina
Depois que melhor conheceu a vida e as atividades de Padre Ibiapina, que atuou em grande parte das terras nordestinas, Dom Marcelo se encantou por este Apóstolo do Nordeste.
Transformou a Casa de Caridade Santa Fé em lugar de romaria, tornou o nome e as ações de Padre Ibiapina mais conhecidas e, em 1982, abriu o processo de canonização desse padre que trouxe um novo jeito de ser Igreja no Nordeste.
Numa tentativa de imitação de Padre Ibiapina, por quem tinha muito apreço e admiração, foi ao encontro dos irmãos que estavam nas periferias, consolou e sendo consolado na sua dor quando estavam juntos. Conduzido pelo amor, suportava tudo.
Ele foi um pastor que se voltou para a libertação do povo, para uma “teologia da enxada”, com padres que viviam com o trabalhador do campo. Essa visão foi partilhada na Paraíba e tinha como pilares Dom José Maria Pires e Dom Marcelo Carvalheira e Padre José Comblin como escudeiros desse projeto, afora outros padres, diáconos e leigos que deram sua contribuição para implantar um projeto em que preparava os futuros presbíteros para estarem junto aos pobres.
Bispo da esperança, ele trouxe para perto do povo a ternura de Jesus Cristo. Criou espaço onde acolheu o povo crucificado, principalmente os abandonados pelos poderes públicos e explorados pelos grandes proprietários rurais, das indústrias e do comércio. Houve época em que seus posicionamentos não foram compreendidos.
Como na visão do profeta Isaías, tinha certeza de que o povo era esperançoso. Uma espera que se consolidava com o fortalecimento da fé. Percebeu no rosto dos pobres a ânsia pela libertação.
Profeta da ternura, denunciou sem temor a malvadeza contra os pobres e lhes ensinou a cobrar os seus direitos. Nunca se negou a atender quem o procurasse. Sempre estava no meio do povo, como um pastor atrás das ovelhas desgarradas.
Missão na Igreja
Além das suas atividades como Arcebispo da Paraíba, que consumiam muito do seu tempo, Dom Marcelo desempenhava outras missões no Brasil e em Roma. Nunca se negou a assumir tarefas propostas pela Igreja.
Como vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que ocupou em dois períodos consecutivos, estava presente na vida desse organismo da Igreja, participava de reuniões periódicas para definição de ações da Igreja no país, dando sua contribuição na elaboração de documentos e orientações. Sempre estava, num fim de semana do mês, em Brasília para reuniões. Além disso, teve que participar de atividades do Pontifício Conselho para os Leigos (Dicastério Romano), do qual era membro efetivo, onde se fazia presente duas vezes por ano.
Participou das Conferências Episcopais que a Igreja realizou em Puebla, São Domingos e Medellín, onde muitas das propostas do Vaticano II tiveram ressonância. Foram endossadas e até mesmo ampliadas, sempre na perspectiva de fazer com que chegasse sua luz sobre as famílias deste continente latino-americano tão cheio de mazelas e atrocidades contra os pobres.
Retorno às origens beneditinas
Quando se completaram quarenta anos da ordenação episcopal de Dom Marcelo Carvalheira, em dezembro de 2004, já tendo concluído seu tempo de pastoreio na Paraíba, ele retornou ao seio da família edificada na espiritualidade beneditina.
No mosteiro de São Bento de Olinda, passou a viver um silêncio recompensado pela meditação, reflexões bíblicas, leituras e uma vida embalada por mantras que remontam ao tempo dos padres do deserto.
No mosteiro passou a viver como oblato beneditino. Viveu o silêncio da clausura, somente interrompido pelo badalar do sino chamando para as matinas e as vésperas, ou quando os pássaros cantavam nas árvores perto do claustro.
Um místico que se deslumbrava com Deus. Um bispo cauteloso, que foi um apóstolo ousado. Um profeta que se compadeceu do sofrimento dos pobres da Paraíba.
Durante toda a vida de presbítero e quando bispo, Dom Marcelo assumiu o Cristo dos oprimidos, foi o pastor dos sofredores a quem acolhia com ternura.
Sem despedida
Agora, quando repousa na vida eterna, seus restos mortais sendo transferidos para a diocese que ajudou a implantar, não haverá despedida, porque sua presença continuará conosco, na mente e no coração.
Como bispo da Ternura e da Solidariedade, Dom Marcelo Pinto Carvalheira se revela nas sementes plantadas nas terras da Paraíba, onde enfrentou desafios e construiu ambiente para o novo humanismo cristão.
Dom Marcelo foi, essencialmente, um evangelizador. Um homem de Deus. Atuava com equilíbrio. Um pastor que fez muito pela Igreja na Paraíba. Dom Marcelo estará sempre conosco.
Qual o papel deste “pastor que tinha o cheiro do povo” na defesa dos oprimidos, e o que mudou na vida das pessoas com quem conviveu?
Funções episcopais:
Ordenação Episcopal: Foi ordenado bispo em João Pessoa (PB), em 27 de dezembro de 1975.
Bispo Auxiliar da Arquidiocese da Paraíba (1975 a 1981).
Bispo Diocesano de Guarabira (dezembro de 1981 a 1995).
Arcebispo Metropolitano da Paraíba (29/11/1995).
Renunciou ao cargo, no limite da idade, 05/05/2004.
Ordenações episcopais:
Foi bispo da sagração episcopal de: Dom Antonio Muniz Fernandes, O. Carm.
Cocelebrante da sagração episcopal de: Dom Xavier Gilles de Maupeou d’Albeiges e Dom Antonio Fernando Saburido, OSB.
Oblato Beneditino passou a ser chamado por Irmão José, Mosteiro de São Bento, em Olinda.
Outras funções exercidas como bispo e arcebispo:
Membro da Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB, sendo responsável pelos setores Leigos, da Pastoral Universitária e das Comunidades Eclesiais de Base (1986 a 1990).
Representante do Episcopado Nacional no Sínodo dos Leigos, em Roma (1987).
Presidente do Regional Nordeste II da CNBB, por eleição (1990 a 1994).
Representante, com outros 38, do Episcopado Brasileiro na Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano – Celam – em São Domingos (1992).
Novamente Membro da Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB, sendo responsável pelos mesmos setores (Leigos, Pastoral Universitária e Comunidades Eclesiais de Base), desde 1994.
Membro do Pontifício Conselho dos Leigos, Dicastério da Cúria Romana, nomeado pelo Papa João Paulo II, desde 1997.
Vice-presidente designado da CNBB (25 de junho de 1998) e depois eleito para o quadriênio 1999 a 2003.
Diácono José Nunes