José Nunes
As Igrejas de São Francisco, o Mosteiro de São Bento, a Catedral Basílica Nossa Senhora das Neves, a Igreja do Carmo e a Misericórdia formam um conjunto arquitetônico para acolher a presença humana que busca harmonia com Deus.
Na arquitetura e na arte dos templos religiosos, sejam os antigos ou da modernidade, possibilitam a vivência do contato com Deus e nos educam para entender sua presença no Cosmos.
Em dias recentes, impulsionado pela visão ao Invisível que carrego desde os tempos de criança, percorri os cinco Templos religiosos erguidos no centro de nossa cidade para o reencontro com a mística na vivência nestes lugares onde, há mais de cinco décadas, tem sido familiar para mim.
Contemplando-os, fico a pensar nas mãos que construíram estes santuários religiosos porque talvez não deram conta de que edificavam lugares onde as pessoas iriam para o encontro com o Invisível no visível espaço.
As suntuosas basílicas e mosteiros existentes em países europeus hospedam o mesmo Deus que repousa no pequeno espaço nos humildes grotões ou favelas nos arredores das cidades, aqui e do outro lado do mundo.
Enquanto caminho pelas ruas na peregrinação, cheguei à conclusão de que as cidades se apresentam como uma casa a nos acolher. No caso específico da antiga Filipeia de Nossa Senhora das Neves, as antigas igrejas estão em posição geográfica de modo a irradiar energia espirituais.
Naquela manhã desejava sentir o Invisível em cada Templo. Como caminhante na estrada de Emaús, escuto as Palavras de Jesus aos meus ouvidos e reconheço o Invisível na Eucaristia quando me aproximo do Sacrário, ou do altar com o pão e o vinho colocados nas âmbulas e patenas, fonte inesgotável no seu mais amplo sentido, para reconstruir o projeto de minha vida, a cada dia.
Sem buscar as catedrais góticas e templos milenares existentes em lugares distantes para o repouso do espírito, contento-me em caminhar pelas Igrejas existentes em nossa cidade para nelas sentir a presença de Deus, vivo no Sacrário.
Em nós existe um umbral de onde olhamos para dentro e para o largo, sabendo que deste umbral passa o perfume de Deus.
Se as pessoas buscassem as igrejas com maior frequência para desfrutar do silêncio do espaço litúrgico, viveriam o reencontro consigo e se alimentaria da paz emanada do lugar.
Sem me dá conta, na minha infância e adolescência, tinha o repouso no cansaço quando andava pela Natureza, escutando o vento nas palmeiras de Serraria e o xuá-xuá da água nos riachinhos perto de nossa casa, em Tapuio.
Quando cresci, percebi Cristo da fração do pão próximo de nós. Esse pão que conhecemos no grande gesto de Jesus, que os habitantes de Emaús também compreenderam depois dele repartir entre todos.
Enquanto percorro os caminhos das cinco igrejas da cidade de João Pessoa, observando a beleza arquitetônica, recordo que cada uma, no seu interior, tem o sentido de recordar o Cosmos. O claustro do Convento São Francisco possibilita essa conexão com o Invisível quando olhamos para o alto.
Nestes lugares sagrados nos tornamos pedras vivas e devemos ter consciência de nosso papel na sociedade.
Como na arte, a literatura inspira-nos no cotidiano, nas paixões e construção de sadios acontecimentos na vida espiritual. Tudo que vem da arte enche a vida de sementes e dão bons frutos.
Nestes espaços, não podemos renunciar as palavras e o sopro místico. Quem aprende a ver o interior e o exterior dos templos religiosos e da natureza, aproxima-se ainda mais do Invisível.
Fico com os teólogos quando apontam que “a verdadeira Igreja é a Igreja das pessoas, pedras vivas”.
Isso porque tudo, “a roupa, o alimento, a construção por mais bela que seja, serve a construção das pedras vivas”.
Nos espaços onde habita o Invisível entram os sábios, os poderosos, os coxos, os aleijados, os estropiados, as pessoas com suas dúvidas.
Estes espaços devem estar sempre de portas escancaradas para receber a todos.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
À sombra de Padre Zé
Muitos talentos ficam ao léu do sonho da vida promissora por falta de oportunidades. As oportunidades chegam, mesmo que demore, mas chegam. Bom quando existe alguém para pegar pela mão e conduzir aos lugares onde brotam leite e mel, conforme a narrativa bíblica do Antigo Testamento.
Esses momentos demoram, mas chegam. Se preparar e saber esperar, pacientemente, é o caminho para as vitórias. Olhar ao horizonte com o pensamento voltado para o ponto luminoso, mesmo distante, faz parte da paisagem da vida. Por mais distante que esteja, nunca se deve perder de vista o ponto luminoso do infinito escuro.
Quando trabalhava na roça no sítio Areial, em Arara, o suor descendo pelo rosto e as mãos ardendo ao atrito do cabo da enxada no cascalho, Nathanael Alves viu uma estrela brilhar à sua frente, sem saber onde ficava.
O jovem Nathanael brocava mato, preparava o roçado, sabia xaxar feijão com o caco de enxada fixado ao cabo de freijó, tratava da vaca que fornecia o leite que vendia na cidade, e era talentoso nos estudos, tinha pendor para as letras, o que chamou a atenção do Cônego Teodomiro de Queiroz, padre da Freguesia.
A enfermidade que ganhou em uma perna o fez habitar por um curto período na casa dos meus avôs. A queimadura no pé proveniente de uma traquinagem com o primo José Avelino, abriu a possibilidade de conhecer Padre José Coutinho, que dava guarida aos pobres.
Em carta ao Padre José Coutinho, atendendo solicitação do fazendeiro Marísio Moreno, este sacerdote apelou para que Nathanael Alves fosse acolhido na Casa do Padre, uma espécie de Pensão Camarada, onde viviam muitos arrimos de família.
Nathanael Alves foi um dos muitos jovens que encontraram rumo na vida a partir da acolhida do Padre Zé. Padre José Coutinho nunca deixou de reconhecer os talentos daqueles que estiveram sob sua proteção e amparo. Nathanael foi um destes.
Quando aprovado em concurso para o Tribunal Eleitoral da Paraíba, em 1954, não poupou elogios ao seu pupilo, ressaltando seu talento e demonstrou confiança de que este filho de Arara conquistaria espaços na atividade profissional, no Judiciário Eleitoral ou no Jornalismo, como realmente aconteceu.
Desde seu nascedouro, o Instituto Padre Zé, com sua Casa do Padre e o Hospital sempre tiveram suas goteiras e panelas vazias, uma pobreza semelhante aos lugares de onde chegavam seus hóspedes, porque não tinham onde cair morto. Centenas de degredados na própria terra foram acolhidos, comiam do mesmo pirão e, à sombra de suas paredes, armavam suas redes e encontraram agasalho para criaram seus próprios voos.
Ao tempo em que para manter sua obra era um-deus-nos-acuda, recorria aos abastados da sociedade e, quando não mais podia se deslocar, usava a cadeira de rodas para percorrer os pontos de maior aglomeração de pessoas para, com sua vareta de madeira, tocava na gente e pedia “a esmola para seus pobres”, no intervalo de cada pigarro.
Poucos ou quase nenhum dos seus filhos adotivos se perderam pelo caminho. Ele apontou os caminhos para muitos Augustos Matracas procedentes dessas brugéias paraibanas.
Pouco tempo depois de ordenado, Padre José da Silva Coutinho iniciava nos anos de 1930 a implantação de obra que logo ganhou dimensões. Com enorme repercussão junto à sociedade, ele acolheu e encaminhou à vida muitos que continuariam molambos não fosse sua mão estendida.
Da árvore que se tornou saíram jornalistas, desembargadores, médicos e profissionais que atuaram em diferentes atividades. Quem esteve à sua sombra, nunca sentiu calor, frio ou passou fome. Ele caminhava pelas ruas pedindo esmolas para o sustento de sua obra. Uma obra missionária de inigualável valor caritativo.
No mês missionário instituído pela Igreja, com forte apelo do Papa Francisco para essa iniciativa, é bom lembrar do Padre José Coutinho. Missionário que deu o peixe, mas também ensinou a pescar, como manda o Homem de Nazaré.
No dia de finados é oportuno lembrar deste missionário que, à porta do Cemitério Senhor da Boa Sentença, estendia a mão para recolher os donativos. Justamente em um dia quando se encontrava em sua cadeira de rodas mendigando em favor dos pobres sob sua proteção, que passou mal, levado ao hospital, faleceu dias depois.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
O grito dos bispos
No ano de 1956 a Igreja promoveu, em Campina Grande, um encontro com os bispos do Nordeste, para discutir diversos temas relacionados à região e ao País, não apenas numa abordagem religiosa, mas teve no centro das discussões a situação econômica, social e política.
O grito ecoou forte e estremeceu os alicerces dos poderes aquartelados na Capital Federal e sacudiu as estruturas conservadoras da Igreja.
Uma ala da Igreja do Brasil se mostrava alerta quanto a crise social que em meados do século passado, revelava-se cada vez mais estágio desolador, jogando-nos à descrença. Situação que existia solidariedade por parte da Igreja ao povo. Era necessário abrir os olhos dos poderes públicos.
As posições da Igreja do Nordeste suscitaram a criação da Sudene e a implantação de políticas públicas que, apesar da interferência nefasta de políticos, durante décadas apresentaram resultados alvissareiros, contribuindo para uma nova fase econômica e social da região.
Era preciso, à época, apresentar sugestões para tirar o Nordeste da miséria. Uma miséria agravada pelas secas seculares e o distanciamento cada vez maior entre nobreza e periferia.
Uma das vozes presentes ao encontro de Campina Grande foi Dom Hélder Câmara, com posições firmes em favor do povo nordestino. Com voz abalizada, chegou à Paraíba dizendo que “vamos arrancar o Nordeste da miséria”.
“Não faltam verbas ao Nordeste: falta planejamento”, disse. Mesmo que a revelação tenha soado como uma simples frase, era a opinião da Igreja.
Era um tempo em que a Igreja dava pitacos e recolhia os ensinamentos de seus grupos de pensadores para levar às autoridades pontos considerados fundamentais ao desenvolvimento e a inclusão das famílias, seguindo as diretrizes dos documentos oficiais do Vaticano e à luz do Evangelho.
Não podemos esquecer que Dom Hélder foi a alma do Conclave, mesmo que destacadas figuras do Episcopado e do Clero brasileiros tenham estado presentes.
O Conclave dos Bispos do Nordeste, para alguns analistas, foi um encontro que teve caráter político. Foi tão relevante que trouxe à Paraíba o presidente Juscelino Kubitschek. Retornando a seus aposentos presidenciais, tratou de avançar com a instalação da Sudene, sob a orientação do paraibano Celso Furtado.
Poderia ter falado de outras importantes personalidades que estiveram presentes aos debates durante o Conclave de Campina, mas desejei revelar posições do então bispo auxiliar do Rio de Janeiro, que seria artificie da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
Sábio em suas colocações, Dom Hélder chegou a dizer que “os problemas com que se defrontam as autoridades precisam ser resolvidas com estudos que visem solucionar questões de longo e curto prazo”.
Dom Helder foi um bispo que falava e mostrava caminhos para que as pessoas tivessem uma melhor condição de vida. Autêntico na sua fé e nas suas convicções.
Sempre dizendo que não pregava golpe ou revolução, lembrava que a Igreja não assumiria a responsabilidade pela execução de obras no Nordeste. Isso é de responsabilidade dos governos.
Este bispo, que os militares chamaram de “bispo vermelho”, era grande em seus ensinamentos. Ensinamentos que precisamos lembrar para que nossos pastores não se esqueçam deles.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
A Primavera e a Musa
Quando a Primavera troca a roupagem da terra, durante as noites, regando as flores com sua aragem, é tempo de reconstruir sonhos.
Em 1954, a Primavera festejou o amanhecer com as roseiras, os cajueiros, as mangueiras, os ipês, os flamboyants e os mulungus floridos ao redor da casa. A cada ano, as floradas se renovavam, até no meu entardecer.
Primavera é período propício para caminhar sem pressa, o ambiente ideal para a mão estendida, o olhar carinhoso, o abraço de reconciliação.
Em agosto, sem que percebêssemos, o vento frio e a ventania, com suas ressacas, e a praia sinalizavam a proximidade da Primavera. Esperamos essa estação silenciosa com sua aura. Percebemos sua densidade, trazendo ventos suaves a circundar nossa casa. Teríamos dias ensolarados e tardes desenhadas com o pôr do sol avermelhado, tempo favorável para escutar a “Valsa das Flores”, de Tchaikovsky.
Contemplo a praia na espera da Primavera, vejo uma vaga espuma galgar a encosta de Tabatinga, quando meu pensamento se volta para Sofia, sabendo que ela contempla sozinha o pôr do sol de sua infância.
Desde 1954, nesse período do ano, impregnado do aroma da terra fresca coroada de verde, escutando as vozes das árvores e o xuá-xuá da água nos córregos como suspiros primaveris, carrego a Primavera comigo.
Há pouco tempo, a terra se escancarou para absorver os pingos das últimas chuvas de agosto que umedeceram os recantos do nosso jardim imaginário, dando maior colorido a essa estação do ano. No sopé das encostas e nos montes, existem as mangueiras, os ipês, os cajueiros floridos. A eles se juntam os flamboyants que desfolham pétalas avermelhadas.
Não tem coisas diferentes nesses dias, mas o que muito me chamou a atenção, observando, do jardim da casa onde estou, é a lavandeira que conduz no bico os fios de capim seco para montar ninho na palmeira.
Nada na Primavera supere a Musa no banho de mar ou o pôr do sol, para depois escutar Bach, lembrando-me desses momentos.
Primavera é poesia, silenciosa e translúcida, estação carregada do silêncio das plantações, dos córregos, na fronte das montanhas floridas, nos fluxos oferecidos pelo mar, tudo que, ao seu tempo e lugar, moveria Strauss, a captar vozes silentes para suas canções. O som dos aparelhos eletrônicos afasta muitos do contato com a Natureza.
Deixemo-nos impregnar pelo aroma da terra fresca coroada de verde.
Na Primavera a terra abre sua alma e sorri quando os últimos respingos da chuva umedecem a relva nas madrugadas. Os dias são mais risonhos, renascem esplêndidos, com seus suspiros, e a leve ventania ao contemplar o pôr do sol.
A Lua grande de agosto antecipou a Primavera deste ano, prevendo dias de longos crepúsculos, com mais energias cósmicas para limpar e fecundar o ventre da mulher que gera a vida. É quando mulheres buscam a benção do útero e dão atenção ao seu ciclo lunar e sua energia.
Silenciosos, escutaremos as canções de Tchaikovsky, de Strauss, de Bach; o canto das cigarras, dos pássaros, lembrando-nos das mulheres que se banham no mar.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Os caminhos do padre
Entre os sítios Tapuio dos Nunes e Olho d’Água, em Serraria, há um riacho que os separa.
Há muito que não visitava o Olho d’Água. Ao observar sua paisagem, a mim chegaram recordações e imagens do tempo de garoto, quando percorria o espaço de uma légua entre os dois sítios e atravessava a pé enxuto o rio Araçagi-mirim.
Em tempos passados, nos dois sítios, pequenos córregos fertilizavam as encostas onde caboclos plantavam e colhiam. Como um deles, outrora eu recostava as mãos no chão, no cimo do monte, em conexão com a natureza, enquanto esperava rebrotar raízes dos grãos semeados. O romper dos brotos trazia o sorriso com a suavidade da brisa. As ramas enverdecidas atraíam os olhares.
No meu tempo de menino, olhava as elevações da terra que devido à distância pareciam sombras. Nos meses de março e junho, gostava de observar a água que descia das encostas para penetrar na terra e fazer germinar o milho, o feijão, a mandioca e o pasto que alimentava o gado. As galinhas poedeiras ciscavam debaixo dos jiraus onde mamãe cultivava coentro, cebolinha e hortelã da folha miúda, que dava gosto na comida.
Gostava de percorrer a distância de Tapuio a Olho d’Água, mesmo sem entender a mística desses lugares. Nem dava conta de que o Padre Ibiapina muitas vezes passou por ali, pois andava pela região de Areia, Pilões e Serraria, quando se deslocava para Arara.
Observava a rústica Capela de Nossa Senhora da Conceição, o pequeno Cruzeiro, bem em frente, e o túmulo do irmão Inácio, que arrecadava esmolas para o padre-mestre, e estaria ali sepultado. Apesar de escutar as histórias sobre o padre e o missionário anônimo, somente mais tarde me dei conta da importância desses missionários para a gente sofrida do Brejo e dos Sertões.
Padre Ibiapina, quando despertou para a vocação missionária, primeiro se apaixonou pelas paisagens do Brejo, a partir do momento em que esteve em Areia para defender um homem levado a júri popular, acusado de assassinato. Tempos depois, revelando-se apóstolo, abraçou os necessitados da região, penetrou pelos Sertões da Paraíba, Ceará e outros estados que se tornaram íntimos dele, sem nunca, porém, esquecer a região brejeira, montanhosa e aprazível, que o acolheu com sua água doce e cristalina.
No caminho de Serraria a Arara, o missionário e seus seguidores passavam pelo Olho d’Água, onde, certamente, pousavam para o descanso, aproveitavam e contemplavam a vastidão de pequenos declives com seus riachos. Observavam, à distância, a povoação de Serraria com suas pequenas casas perdidas em meio aos ipês, mulungus, jatobás, angicos brancos, tambores e maçarandubas.
Na manhã de domingo, no meu caminhar lento de pernas curtas, pude observar, com atenção de adulto, que as antigas residências de Olho d’Água, com eiras e beiras hoje cobertas de lodo. Recordava o tempo quando, naquela região, se plantava café e se criava gado em abundância, sem desmatamento como se verifica nos tempos atuais.
Ornado de ramagem nativa, pequenas flores cor de ouro e brancas que brotam em estação invernosa, e no período de estio com a vegetação moribunda e os rasteiros gravetos pontiagudos, o túmulo nu do irmão Inácio mostrava a marca da presença dos que por ali passam e depositam amuletos, ex-votos e fitas brancas, vermelhas e azuis junto ao resto de velas que foram acesas.
Intimamente abraçados, a capela, o cruzeiro e o túmulo do esquecido beato trouxeram-me à memória as antigas romarias que meus ancestrais faziam para lembrar o padre-mestre que, enquanto esteve na região, alimentou voos místicos.
Contam que, antigamente, em noite de lua, uma cobra voava sobre o túmulo do beato. Quem viu, dava testemunho. Se é verdade, não sei
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Clamor e esperança
No ano de 2000, precisamente na festa litúrgica de São José, a 19 de março, os cinco bispos integrantes da Província Eclesiástica da Paraíba divulgaram Carta Pastoral denominada de “Nordeste Clamor e Esperança”, contendo o pensamento da Igreja referente a alguns temas relevantes, que incomodavam a população e exigiam uma orientação por parte dos pastores.
Na Carta, os bispos Dom Marcelo Pinto Carvalheira (Arquidiocese da Paraíba), Dom Luís Gonzaga Fernandes (Campina Grande), Dom Gerardo Andrade Pontes (Patos), Dom Matias Patrício de Macedo (Cajazeiras) e Dom Antônio Muniz Fernandes (Guarabira), analisaram a conjuntura política, econômica e social do Nordeste, com repercussão na Paraíba.
Mais de cinco décadas depois de tornado público este documento, parece atual e oportuno o momento para uma releitura desta Carta, a partir dos pontos, para que, tendo a Palavra de Deus como horizonte, possamos atualizar na discussão. A pergunta dos bispos está atual: “Que direito têm vocês de oprimir o meu povo e de esmagar a face dos pobres?” (Is 3,14-15).
Os bispos paraibanos recordavam as estruturas que há séculos oprimem a sociedade, e no caso do Nordeste, ainda mais porque é uma região agravada com as secas periódicas, que se tornaram uma marca da tragédia humana.
Desde o final do século XIX as artes e a literatura gritavam, sendo aliadas na denúncia do quadro social que humilha as pessoas. Um povo que “morre de fome na terra de Canaã”.
Em meados do século passado, uma luz surgiu com a criação da Sudene e o aparecimento de programas sociais, mesmo a contragosto de vozes agourentas.
Os bispos da Paraíba tinham a consciência de que “o abandono dos pobres é tanto mais grave quanto se consolida o reconhecimento de que, sem a participação deles, não se fará o desenvolvimento”.
Preocupados com as causas sociais, para denunciar e opinar, eles nunca perderam de vista a saga que marcava a tragédia humana. Uma tragédia humana gerada pelo analfabetismo que os religiosos apontavam como uma das causas centrais para a vida de penúria das famílias, sobretudo as famílias residentes no campo e nas periferias das cidades.
Com a visão voltada para os documentos da Igreja, Dom José Maria Pires e Dom Helder Câmara, assim como Dom Antônio Fragoso e outros bispos e padres, tinham a convicção de que era preciso sair do “centro para a margem” para atingir a plenitude da vida em que não tivesse fome, opressão e nem a violência ganhando dimensões insuportáveis.
Diante do quadro em que estava o Nordeste e a Paraíba, os bispos escreveram no ano de 2000: “Vemos que, neste momento, a Igreja não pode ficar conformada, apenas escutando lamentações”. E acrescentavam: “Cabe-lhe uma missão profética, de ser ‘voz dos que não têm voz’, de pronunciar sua indignação ética diante do sacrifício de milhares de vidas humanas”.
Na Carta, apontaram nove proposições como compromisso da Igreja e da Sociedade para debate e o aperfeiçoamento institucional democrático.
Todos os pontos indicados poderiam ser analisados à luz da realidade atual, para saber até que ponto contribuíram para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Como no ano de 2000, quando “a situação do Nordeste, neste momento, escandaliza as Igrejas e todas as pessoas de boa vontade”, a situação agora não é diferente.
Como no início deste século, quando a Carta dos Bispos foi escrita, a situação do Nordeste é preocupante, mesmo que existam pequenas ilhas de bonança. As crises são talvez mais gritantes, com “quadro clamoroso de desigualdades e injustiças”. Acrescente-se a tudo o que se verificava àquela época, as inquietações dos tempos atuais, principalmente a violência na sua abrangência incontrolável.
Na época de sua publicação, há 24 anos, a Carta dos Bispos da Paraíba se constituiu um documento que teve grande repercussão. Será oportuna, hoje, uma discussão por parte da Igreja sobre as conquistas e avanços alcançados até agora, de modo a apontar caminhos à luz dos Evangelhos e dos documentos emanados da Igreja, como propostas para uma vida melhor de todos.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Em defesa dos esquecidos
No dia 18 de junho de 1967 foi promulgada Carta Apostólica pelo Papa Paulo VI que instituía o Diaconato Permanente, após o seu restauro pelo Concílio Vaticano II, ocorrido em Roma no ano de 1965.
A restauração do diaconato representou uma das tantas novidades suscitadas pelo Concílio como avanços na Igreja que dava sinais de cansaço. Três anos depois dessa carta assinada pelo papa foram ordenados na Paraíba por Dom José Maria Pires os quatro primeiros diáconos casados.
Acreditamos que o diácono existe não porque faltam padres, mas porque é necessário à Igreja. Foi assim na época dos apóstolos e igualmente agora, porque completa a estrutura orgânica sacramental e ministerial das três dimensões: diácono, padre e bispo. O diácono tem sua identidade própria. Assumindo suas atividades, deixa o padre liberado para exercer as funções que somente este pode fazer, como por exemplo, levar o óleo da unção aos enfermos. Estar com as famílias em suas casas…
Semelhante ao tempo quando de sua restauração cinquenta anos atrás, as comunidades hoje estão ávidas e sedentas de pastores, pois se sentem sozinhas, com inquietantes provações de toda ordem, espiritual, social e econômica.
Décadas depois este ministério parece contabilizar avanços dentro da Igreja. Cada vez mais dioceses recorrem a homens casados para suprir as necessidades de ministros ordenados nas comunidades, porque os padres já não dão conta de tantos afazeres.
Percebe-se por experiência própria que as comunidades acolhem com solicitude e carinho o diácono, porque veem nele a continuidade da mão estendida do padre para atendê-las em suas necessidades espirituais. Exercitando a dimensão sócio caritativa e a liturgia prevista nas normas da Igreja, é chamado ao serviço da mesa, a cuidar dos pobres, a proclamar a Palavra.
Diariamente também exerce seu ministério de serviço no ambiente de seu trabalho e no mundo onde alguns andam um pouco fora da Igreja, destacando os valores da virtude da caridade e da justiça. Seus gestos devem ser um convite para que as pessoas façam o mesmo.
Ainda existem padres que ainda não compreenderam as funções do diácono. Esses precisam entender que o diácono é o primeiro colaborador do pároco, está ao seu lado para ajudar nos serviços pastorais na área da paróquia e nunca para ocupar seu lugar. É um colaborador do bispo e da Igreja, como são os sacerdotes.
O diácono deve fazer com que seu ministério ganhe dimensões louváveis na Igreja a partir da perseverança na oração, na dedicação ao serviço e no uso do seu tempo na missão, mesmo em sacrifício do lazer com a família.
Ser diácono não é uma promoção do leigo, porque esse tem seu papel específico e importante na Igreja, mas se trata de uma contribuição para fazer com que todos tenham uma vida de serenidade. Não é um ministério de poder, mas de serviço, do exercício constante da caridade, porque chamado à vida de simplicidade, de humildade.
Não entendo o diácono ausente do servir e defender pobre, ao estudo da Teologia da Libertação.
Tantas décadas depois, o diácono ainda se tem um longo caminho a percorrer, porque existem comunidades isoladas pela falta de pastor. Nesses lugares o diácono deve chegar, como servo silencioso, para ajudar a suscitar uma vida nova.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Em defesa dos esquecidos
Para definir a situação atual do País, recordo uma assertiva de Dom Marcelo Carvalheira de décadas atrás, quando nosso arcebispo emérito dizia àquela época que “estávamos vivendo uma guerra civil”. Quando escutei isto, num tempo quando ainda a incidência da violência não amedrontava tanto, mesmo rodando às nossas casas, estremeci.
As palavras “guerra civil” sempre estiveram na minha mente como algo pernicioso à dignidade humana, porque escutava meu pai conversar sobre isso quando me colocava perto do balcão na bodega, em nossa casa, no sítio onde nascemos.
Nosso religioso, de saudosa memória, que está fazendo uma falta enorme, quando falou que estávamos vivendo “uma guerra civil” se referia a situação nas periferias das grandes cidades, onde a criminalidade organizada se expandia e se modernizava. Ele citava, como exemplo, as favelas do Rio, onde quem comandava não era mais a autoridade constituída, mas as lideranças de facções do crime. “Se um dia eles resolverem descer sobre a cidade e realizar uma revolução armada…”, “seria uma coisa terrível”, dizia ele. No seu entender, os Poderes Legislativo, federal e os estaduais, estavam enfraquecidos e desacreditados para tomar medidas que pudessem estancar tal sangria.
O problema atual é que não temos mais liderança que comova com suas palavras, que aglutine uma consciência popular, forte e consistente, porque até nesse ponto houve retrocesso. Não bastam oferecer oportunidades de frequentar o circo nem distribuir o pão, mas criar condições para que circo e pão não sejam usados como enganação nem moedas de barganhas.
Quando pronunciou esta frase, Dom Marcelo era o vice-presidente da CNBB, portanto uma voz respeitada e representativa dentro da Igreja que ficava em defesa dos esquecidos. Certa vez ele disse que o Poder Judiciário, a única instância a quem restava para se recorrer em tal situação, “devia ser um poder honrado”, mas naquela época não se portava, em alguns casos, dessa maneira.
“Por isso digo que a Igreja seja a boca aberta e solta para defender o pobre, porque às vezes eles não têm quem lhes defendam”, disse.
Sem a quem recorrer, resta senão a Igreja, como braço estendido para o acolhimento. Por isso precisamos de uma igreja profética, que esteja ao lado dos esquecidos, sendo a voz dos que lhe estendem as mãos. A Igreja da esperança anunciada por Dom Helder Câmara, Dom José Maria Pires, Dom Marcelo Carvalheira, Dom Antônio Fragoso, Padre Ibiapina…
Não tenhamos dúvida de que se a Igreja não estivesse ao lado do homem do campo e das periferias, apontando uma luz no final do túnel. dando esperança, este País estaria incendiado há mais tempo. Os guetos urbanos, destino final dos expulsos da terra, teriam explodido mais cedo. Mas o governo ausentou-se. As cinco décadas que se passaram foram terríveis quanto ao distanciamento social entre pobres e ricos. O pobre cada vez mais sufocado, e os ricos sempre mais na sombra frondosa. A fome ganhou maiores proporções. A violência espalhou-se na favela e chegou ao campo.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Dom Marcelo e Padre Ibiapina
Depois que conheceu a vida e as atividades de Padre Ibiapina, que atuou em grande parte das terras nordestinas em meados do século XIX, Dom Marcelo se encantou por este Apóstolo do Nordeste.
Dom Marcelo transformou a Casa de Caridade Santa Fé em lugar de romaria, tornou o nome e as ações de Padre Ibiapina mais conhecidas e, em 1982, abriu o processo de canonização deste padre que trouxe um novo jeito de ser para a Igreja no Nordeste.
Numa tentativa de imitação de Padre Ibiapina, por quem tinha muito apreço e admiração, Dom Marcelo foi ao encontro dos irmãos que estavam nas periferias, consolou a muitos na sua dor quando estavam juntos. Conduzido pelo amor, suportava tudo.
O quinto arcebispo da Paraíba foi um pastor que buscou a libertação do povo, apontou para uma “teologia da enxada”, movimento criado por Dom José para padres que viviam com o trabalhador do campo. Essa visão partilhada na Paraíba e tinha como pilares Dom José Maria Pires e Padre José Comblin, como escudeiros desse projeto, afora outros padres, diáconos e leigos que deram contribuição para implantar um projeto em que preparava os futuros presbíteros para estarem junto aos pobres.
Bispo da esperança, Dom Marcelo trouxe para perto do povo a ternura de Jesus Cristo. Criou espaço onde acolheu o povo crucificado, principalmente os abandonados pelos poderes públicos e explorados pelos grandes proprietários rurais, das indústrias e do comércio. Houve época em que seus posicionamentos não foram compreendidos, mas soube passar por todos esses momentos de incompreensão.
Ele tinha certeza de que o povo era esperançoso. Uma espera que se consolidava com o fortalecimento da fé. Tão logo chegou na Paraíba. percebeu no rosto dos pobres a ânsia pela libertação.
Profeta da ternura, denunciou sem temor a malvadeza contra os pobres e lhes ensinou a cobrar os seus direitos. Nunca se negou a atender quem o procurasse. Sempre estava no meio do povo, como um pastor atrás das ovelhas desgarradas.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Fome na terra de Canaã
Quando caminhava pelo sítio por entre carrapichos, no aceiro das conversas com os mais velhos sempre estava a situação de penúria em que as famílias viviam à época de minha infância, a seca e a carestia predominavam como assuntos, enquanto as panelas sobre trempes coziam a gororoba, mesmo sendo pouca. Crescia a escassez pela procura da mão-de-obra e os engenhos perdiam a força produtiva devido o aperto dos bancos. Tudo isso contribuíram para a expulsão de famílias que encheram as pontas das ruas, que em Serraria não foi diferente.
A exploração humana avançou um século depois do 13 de maio de 1888, a escravidão revelada de outras formas sem o uso do chicote nem do tronco para o castigo, métodos igualmente desprezíveis. Se aperfeiçoou e expandiu a sujeição no cambão e no cabresto, o mesmo patrão que recolheu a riqueza continuou a usar o braço do pobre. Esse pobre que ficou cada vez mais pobre.
A fome continua na mesma paisagem de séculos passados, semelhante a fome que Padre Ibiapina presenciou no sítio Santa Fé de Arara em meado do século 19, e se compadeceu quando, aos famintos, distribuía punhado de farinha e cumbuca com água para ninguém morrer na grande seca de 1877.
Numa frase lapidada por José Américo de Almeida, revelada em A Bagaceira, nos oferece a dimensão do sufocante quadro da fome, que amolece qualquer duro coração. “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã”.
Em Os Miseráveis, Victor Hugo revelou a expressão maior da miséria humana e da opressão, e apontou a sinceridade da mão benevolente.
Se antes os desvalidos percorriam distâncias sobre as pedras esfareladas nas terras esturricadas do Sertão, hoje pisam o calçamento e o asfalto escaldante à cata de migalhas que já não são disputadas pelos cachorrinhos, porque estes têm ração balanceada e assistência veterinária. As cenas de pedintes pelas ruas nos fazem menores.
Outro dia, desesperada, uma criança, para não furtar, apelou à polícia. Reduzida a trapos com seus irmãos e a mãe de peitos murchos, no desespero da barriga vazia, recorreu a quem é pago para protegê-lo da violência e pediu alimento. A violência da fome, que é pior das violências, velou o inocente a pedir pão que em casa não encontrou.
Há muita sabedoria no gesto da criança faminta, suponho, fruto de iluminação divina. Mais cedo ou mais tarde, Deus escuta o clamor dos pobres. O menino poderia, guiado pela fome, furtar para alimentar os irmãos. Buscou socorro no corpo policial, esse mesmo que o reprimiria e levaria ao cárcere se pego com alimento furtado. Entretanto, o menor abriu seu coração faminto em clamor e humilhado. A Lei é implacável com o desnutrido que furta uma banana na feira e complacente com os que se locupletam dos recursos públicos. Claro que abominamos ambos gestos, mas existem contradição na aplicação da Lei.
O caboclo João dos Anjos, casado com uma parente minha, possuía dois hectares de terra onde plantava seu roçado, cultivava frutas, tinha pequenas criações e muitos meninos. Se não possuía fartura, à mesa nunca deixou de ter o ovo cozido e, quando a fava era amarga, misturava com rapadura. A barriga roncava, mas nunca pegou galinha no terreiro alheio.
Os pobres vivem a buscar o monte, esse monte bíblico onde pairam esperanças e certezas. O monte elevado, o monte alcantilado, como fala o poeta São João da Cruz, lugar onde Deus habita, onde tem aragem e consolo nas noites escuras e nos dias claros, revelado em tudo. Com os cinco pães e dois peixes, Jesus proporcionou a refeição coletivamente.
Quando entendermos a forma de repartir os dois peixes e os cinco pães, não haverá mais crianças que durma com a barriga roncando por causa da fome.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
A dor traz gesto poético
Em poema antológico, o monge beneditino Marcos Barbosa, da Academia Brasileira de Letras, fala do amor do homem e da mulher quando formam um casal, reproduzem a espécie humana como dom supremo de Deus e enfrenta com serenidade todas as barreiras que se lhe impõe.
Em Araruna, um casal completou 75 anos de matrimônio. A data foi celebrada com simplicidade, mesmo grande a alegria de seus familiares, com missa presidida pelo meu irmão, Padre Gaspar Rafael Nunes da Costa.
Já tive oportunidade de testemunhar gesto de amor semelhante, quando casais invocaram benções na celebração de 50 e de 65 anos de casamento.
Um desses momento, o casal vivia momento de dor. Há mais de quinze anos ele estava em estado vegetativo, intercalando os dias entre a cama de um hospital e o leito de sua casa.
Na leitura da Carta de Paulo aos Coríntios ouvimos que Deus é fiel para conosco. Dessa fidelidade vem a força para suportarmos as inquietações, as dores que estão fora no nosso controle e com as quais convivemos.
Tudo o que acontece conosco são do plano de Deus. Ele nos fortalece e alimenta para transpor as barreiras que, não tivesse sua mão, dificilmente daríamos passos para frente.
A maior prova de amor, no dizer de Jesus, é doar-se pelo outro. Doação que ultrapassa os limites físicos e do entendimento porque alimentada pela força que brota do encontro com Deus, na pessoa do outro. O que acontece para tanta dedicação e aceitação do outro, sobretudo na dor e no sofrimento, está além de nossos entendimentos porque vem das energias cósmicas que nos governam, que é o próprio Deus.
Somente quem faz o encontro com Deus, no seu silêncio, é capaz de amar e nunca esquecer. Tantas pessoas largam tudo para servir, e servindo fazem esse encontro com Deus. “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, disse Jesus para seus seguidores.
Grande é a arte do amor, como nos ensinou o mestre do Amor. Somente no amor é possível viver 50 ou 75 anos de uma união abençoada no Sacramento do matrimônio. Aprende-se a amar cultivando a arte da contemplação do belo, na paciência, na capacidade de perdoar quem estar ao nosso lado. Não fosse o amor, dificilmente haveria esperança. Amar é estar à disposição para servir, dedicar-se ao escolhido. Amar é transformar a vida numa primavera, não importando a situação porque o amor tudo supera.
A semente do amor semeada faz a vida brotar em cada semente germinada.
O poeta Ferreira Gullar disse que a dor física é paralisante, não inspira poesia. Não concordo com ele. A doação por quem sofre a dor física é poesia. Na Cruz, o gesto de Jesus foi altruísta, profundo, afetivo e poético. Na sua dor, Cristo produziu solidariedade com gesto poético.
Porque mais sensíveis e mais poéticas, em certas ocasiões, as mulheres portam gestos caritativos mais profundos do que os homens, se dedicam aos outros com fervor.
Nos gestos destes casais temos uma demonstração capital do cumprimento da promessa de estarem juntos ao escolhido em todas as circunstâncias, na alegria e na tristeza, mesmo que a dor do sofrimento exija superação. Tudo é bonito sinal de afeto, construído na fé e no amor ao próximo.
O amor faz a pessoa capaz de conviver com seu amado no leito de hospital, recolhido aos cuidados de Deus pelas mãos de médicos, das cuidadoras e acompanhantes. Amar é servir.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Meu pai
Quando celebramos o Dia dos Pais, também quero lembrar do meu pai que hoje é saudade. Uma saudade realimentada na presença dos meus filhos e dos meus netos que preenchem a ausência de papai.
Recordo todos os momentos vividos juntos, mas nunca esqueço de quando nos despedimos de seu corpo ao ser recolhido à terra mãe.
No começo da tarde, antes do sol-posto, com nuvens solitárias no céu, abriu-se a cova rasa para a terra receber o corpo de meu pai. A carne voltando ao pó. Elevei meus olhos em volta, a tarde descia lentamente com poucas nuvens no céu; ao redor, amigos e familiares, alguns cresceram juntos comigo, despediam-se dele e nos cumprimentavam.
Olhando a sua face pálida dentro do ataúde, eu chorei calado, soltando um punhado de terra sobre papai.
No segundo punhado de terra que deixei cair por entre os dedos das mãos, continuei chorando calado e sai dali cabisbaixo.
O sol estava forte, pequenas nuvens douradas vagavam sobre os declives do lugar onde palmeiras acenavam. Sentia uma vibração de perdão ao meu pai, e ele reconciliado com Deus e conosco.
Seus olhos fechados para sempre. Suas mãos já não tocariam minha cabeça, nem apontavam o horizonte a seguir.
Ali estava inerte um homem que, se porventura tenha cometido desacertos, certamente involuntariamente, os cometeu transtornado por um contingente de desvios psíquicos que não soube dominar, e que não sei como explicar.
Ainda sinto suas mãos apertando minhas mãos em tantas ocasiões durante nossos encontros. Sua voz continua falando do milharal com grandes espigas, recordando a vaca que pariu um tourinho, a hipoteca do banco vencida. Lembrava-se dos amigos da infância. Dizia que a bodega estava sem fregueses, mas nunca falou da apartação da família.
Nunca esqueci as tardes e as noites de tormentas na tentativa de apaziguar papai e mamãe.
Papai ficou morando no sítio, e mamãe com os seus filhos foi residir em Arara.
Meu pai foi um homem original no seu tempo, desmoronou sem retrair-se. Recordava para nós as origens familiares, quando ali chegaram, o lugar era mata virgem.
Viveu seus últimos anos de vida sem deixar o lugar onde sempre viveu e a que devotava paixão.
Quando olhei o corpo de meu pai dentro do caixão, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Serraria, para as exéquias e despedidas dos amigos, reencontrei rostos familiares e outros que nem conhecia. Foi quando percebi que meu pai era querido no lugar onde nasceu e viveu por toda a vida. Muitos nem sabiam quem tinha sido seu avô José Pedro da Costa, homem de mãos calejadas, que possuía léguas de terras em Serraria, quando o lugar tinha poucas casas e muita mata.
Quando fecho os olhos é a imagem deste homem sofrido, revelado nas raízes da família que ao seu tempo ajudou construir o passado de nossa terra, que me reveste de esperança.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
O papa e os diáconos
A Festa de São Lourenço, Padroeiro dos Diáconos, neste ano está ainda mais ornada de significados e temos o convite para a reflexão por causa dos cinquenta anos da promulgação da Carta Apostólica pelo Papa Paulo VI que instituiu definitivamente o Diaconado Permanente, uma vez que havia sido restaurado em 1965, por ocasião do Concílio Vaticano II, nosso desejo é expressar gratidão aos que apoiam e acompanham o diácono no serviço missionário.
É salutar trazer uma reflexão acerca das palavras do venerável Papa Francisco aos diáconos, que durante seu pontificado tem recorrido a ensinamentos de Jesus para fazer brotar uma Igreja revigorada, mais servidora. Para se juntar aos agentes que colaboram com essa edificação, o papa tem dirigido mensagem apelativa e palavras confortadoras também aos diáconos.
Nosso intuito é tão somente colaborar na reflexão para melhor compreender o serviço do diácono a partir das palavras do papa, que ajudam na reconstrução de atitudes e novos comportamentos.
Desde quando seu nome foi anunciado como novo papa, no dia 13 de março de 2013, e quando ele apareceu na janela da Praça São Pedro, no Vaticano, para olhar e acenar ao mundo, o Papa Francisco vem demonstrando modéstia e simplicidade na prática de vida que caracteriza o modo de viver dos jesuítas e suas primeiras palavras pronunciadas apontavam os caminhos que a Igreja deveria seguir.
Quando assumiu a Cúria Romana, humildemente, olhando a multidão à sua frente, pediu orações e que o povo que assistia a solenidade na Praça São Pedro, o abençoasse para que pudesse abençoar a todos. Naquele momento irradiava confiança e paz. Foi uma demonstração de abertura da centralidade do poder da Igreja ao povo, já realçada no Concílio Vaticano II.
O papa tem demonstrado o desejo de consolidar avanços na Igreja, ele mesmo protagoniza gestos simples e inovadores, como ir aos necessitados para ouvir suas lamentações.
Tem convidado a todos para olhar ao redor, identificar e contribuir com a melhoria da situação periclitante das pessoas. Deseja uma atenção especial para o debate da questão da pobreza em espaçosos setores da sociedade, sem esquecer as pessoas em estado de vulnerabilidade.
A nova Igreja “em saída” definida pelo Vaticano II e que Francisco almeja implantada, muito necessita de ministros ordenados, de leigos comprometidos. O diácono é chamado a viver autenticamente seu papel nesse panorama. É convidado para ficar no círculo dos acontecimentos, escutando e animando, seja como orientador ou apenas companheiro, mas que esteja presente com uma mensagem animadora.
Nesta Igreja desejada pelo Papa Francisco, os diáconos podem ter um papel preponderante junto aos outros protagonistas, bispos, padres e leigos.
Os primeiros pronunciamentos do papa após sua escolha sinalizaram o desejo de implantar uma Igreja sem pompas e, sobretudo, missionária. Também demonstrava sua preocupação para com os que supostamente viviam a suntuosidade em suas cátedras. Apontava caminhos da simplicidade e da justeza de atitudes no seguimento de Jesus. Despojado de pompas, apontou o horizonte que a Igreja deveria olhar. Acreditamos que esse olhar não deve estar distante do modo como os diáconos são chamados a testemunhar e a viver.
Desde os primeiros momentos do seu pontificado quando se dirigia aos bispos e presbíteros, sempre os estimulou a avançar às águas mais profundas na busca de alavancar o projeto de uma Igreja servidora. Também em diversas oportunidades o papa se manifestou aos diáconos, exortando-os ao serviço, à prática constante da caridade, a despojar-se dos apetrechos que podam qualquer gesto concreto de solicitude.
O Papa Francisco tem apresentado em suas homilias, pregações e preleções dirigidas à Cúria Romana, importantes reflexões acerca dos ministros ordenados e grupos específicos de leigos. É preciso compreender a visão do papa sobre a Igreja, sua eclesiologia, para saber o que ele espera dos padres e diáconos. Tem chamado a atenção para o projeto da Igreja missionária, mais servidora, mais acolhedora, mais atenta aos pobres e excluídos. Sua visão é de que nesse processo de transformação, o diácono pode e dever se constituir num parceiro indispensável.
Nas suas primeiras exortações aos diáconos, a exemplo de como aconteceu no dia 12 de novembro de 2014 na Praça São Pedro, no Vaticano, quando falando aos ministros ordenados, dizia que o Senhor continua necessitando dos bispos, padres e diáconos para apascentar o seu rebanho. E ressaltava que esses ministros constituem a esperança e o testemunho da caridade.
Em determinada ocasião, recordando as “Cartas pastorais” do apóstolo Paulo aos seus discípulos Tito e Timóteo, Francisco recordou que junto aos dotes de fé e vida espiritual, quando depurados nas suas qualidades humanas, os bispos, padres e diáconos “sejam excessivamente capazes do acolhimento, tenham sobriedade, paciência, mansidão, confiança, bondade de coração e estejam prontos ao serviço”.
Em outras oportunidades, dirigindo-se especialmente aos diáconos, o Papa Francisco repetidamente tem se mostrado ser um pastor “acolhedor” e profundo incentivador desse ministério, quase sempre deixando claro em suas palavras que os diáconos devem ser funcionários de Cristo quando servem ao irmão mais próximo.
Quando é ordenado, o diácono faz manifestação pública da vocação para o serviço por toda a sua vida, não apenas para a Igreja, mas principalmente aos pobres e aos necessitados. Nessa dinâmica, o papa recomenda que sejam os diáconos “servidores de Cristo e não funcionários”.
Numa carta aos diáconos do Brasil, em fevereiro de 2017, como tem feito em mais de uma oportunidade, o papa manifestou estímulo a estes ministros ordenados. Destacando na carta o testemunho da fidelidade à Cátedra de São Pedro, o papa agradeceu e exortou para que “todos busquem incansavelmente ser modelos de discípulos missionários”. (cf. Carta enviada a CND).
Segundo ele, quem anuncia Jesus é convidado a servir, e pelo serviço apregoa a presença de Jesus. Entende que o diácono é chamado a visibilizar na comunidade Jesus que é a Palavra do Pai, Aquele que trouxe a boa-nova (cf. Is 61,1), que é a própria boa-nova (cf. Lc 4,18), que se fez nosso servo (Fl 2,27), e que igualmente não veio para ser servido, mas para servir (Mc 10,45), e mais, tornou-se misericordioso, exercitou a caridade e foi servo de todos.
Os diáconos podem contribuir significativamente com o novo projeto de Igreja da esperança e da misericórdia como pretende o papa, visibilizando o rosto da humanidade de Jesus. Jesus, o diácono por excelência, no dizer de Dom Marcelo Carvalheira, é o modelo de servidor para quem almeja tornar-se agente da caridade.
Na homília por ocasião do Jubileu dos Diáconos, no domingo, 29 de maio de 2016, na Praça São Pedro, o Papa Francisco novamente fez uma exortação aos diáconos, chamando-os a viver com plena convicção seu ministério tendo como base os ensinamentos de Jesus. “O servo sabe abrir as portas do seu tempo e dos seus espaços a quem vive ao seu redor e também a quem bate à porta fora do horário, à custa de interromper algo que lhe agrada ou o merecido repouso. O servo não se cinge aos horários. (…) Assim, queridos diáconos, vivendo na disponibilidade, o vosso serviço será livre de qualquer interesse próprio e evangelicamente fecundo”.
Neste sentido, o diácono se torna um “servo bom e fiel”, acolhendo a todos com amor resignado, sem se enfadar de compreender as ansiedades dos outros, fazendo que se sintam bem-vindos à casa do Pai, à comunidade eclesial, “onde quem é maior é quem serve e não quem manda” (cf. Lc 22,26). O papa recomenda que “nunca ralheis, nunca. Assim na mansidão, queridos diáconos, amadurecerá a nossa vocação de ministros da caridade”.
Nesta mesma exortação o papa lembrou que todos são chamados a servir, mas para que isso ocorra concretamente, é preciso que a pessoa seja curada interiormente. “Para estar apto ao serviço, precisamos da saúde do coração: um coração curado por Deus, que se sinta perdoado e não seja fechado nem duro. Ser-nos-á útil rezar confiadamente todos os dias por isto, pedindo para sermos curados por Jesus, assemelhar-nos a Ele, que ‘já não nos chama de servos, mas amigos’ (cf. Jo, 15,15). Queridos diáconos, podeis pedir diariamente esta graça na oração, numa oração em que apresenteis as fadigas, os imprevistos, os cansaços e as esperanças: uma oração verdadeira, que leve a vida ao Senhor e traga o Senhor à vida. E, quando servirdes à Mesa Eucarística, lá encontrareis a presença de Jesus, que Se dá a vós para que vos doeis aos outros”.
O Santo Padre conclui sua mensagem por ocasião das comemorações do Jubileu dos Diáconos com estas palavras de carinho: “Assim, disponíveis na vida, mansos de coração e em diálogo constante com Jesus, não tereis medo de ser servos de Cristo, de encontrar e acariciar a carne do Senhor nos pobres de hoje”.
Ainda lembrando outras palavras igualmente confortadoras do Papa Francisco, a 25 de março de 2017, expressou uma bonita exortação aos diáconos: “O diácono é o guarda do serviço da Igreja (…). Vós sois os guardas do serviço na Igreja: o serviço à Palavra, o serviço no Altar, o serviço aos Pobres. E a vossa missão, a missão dos diáconos, e o seu contributo consiste nisto: em recordar a todos nós que a fé, nas suas diversas expressões – a liturgia comunitária, a oração pessoal, as diversas formas de caridade – e nos seus vários estados de vida – laical, clerical, familiar – possui uma dimensão essencial de serviço. O serviço a Deus e aos irmãos”.
Não é demais relembrar que o diácono é chamado a testemunhar a fé e expressar o rosto da ternura de Jesus. O documento sobre as Diretrizes para o Diaconado Permanente da Igreja no Brasil prescreve: “A promoção da caridade e do serviço de toda a Igreja e evangelização. O diácono testemunha a presença viva da caridade de toda a Igreja e contribui para a edificação do Corpo de Cristo, reunindo a comunidade dispersa, desenvolvendo o senso comunitário e o espírito de família. Vai ao encontro das pessoas de qualquer religião ou raça, classe ou situação social, fazendo-se um servidor de todos como Jesus” (n.55).
O caminho é longo, o Bom Pastor nos espera. O papa nos convida a estarmos juntos com nosso bispo e o padre a quem fomos enviados para colaborar no serviço da Igreja, ajudando na construção da sociedade do amor, levando a Palavra de Deus a todos os recantos.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Aqui andava como um camponês
Cheguei para morar nesta cidade banhada pelo mar, sem sair do meu cantinho de terra. Precisamente no dia 27 de junho de 1971, contemplei pela primeira vez a paisagem do lugar, minha aragem de repouso. Durante muitos anos aqui andei como um camponês, taciturno, silencioso, convivendo com pessoas somíticas e espertas, mas sem saber porque, encontrei quem me estendeu a mão.
Na madrugada com neblina, despedi-me de mamãe num abraço esperançoso, sem olhar meus irmãos que dormiam. Duas parelhas de roupas numa sacola de pano, o coração aos prantos, o olhar silencioso ao que estava deixando. Não olhei para trás porque mamãe chorava.
Deixava as noites mal dormidas e os dias longos. Era madrugada. O ônibus vagaroso parava a todo instante.
Olhava pela janela do ônibus, deslumbrava-me com a alba sobre as serras de Areia cobertas de névoas, normais à época, sem tirar a vista do sol remansoso surgindo reluzente à frente. Silencioso e ansioso, perguntava-me por que demorava chegar à cidade, meu novo espojadouro.
Cheguei para morar na Capital da Paraíba, no mês de junho de 1971, lugar que transformei em morada de sonhos e refúgio de devaneios. Naquela época, as casas se aproximavam de mim como querendo me engolir e o vento tecia meu novo destino.
A cidade se tornou albergue para meu descanso, depois da paciente e longa viagem até os dezesseis anos enquanto morando em Serraria e Arara, tempo da adubação da terra e da plantação de sementes que cresceram depois com o águo.
Quando cheguei aqui, esta cidade tinha árvores frutíferas e aromatizantes em abundância, casas de largos quintais com flores, a noite espalhava brisa pelas ruas quase desertas.
Moradores recolhiam os últimos suspiros de uma cidade que estava sendo tomada pelo espanto e o medo. Sentávamos nas praças à noite em conversas amenas, e os bares nos conheciam.
Andava lentamente pelas calçadas para observar os jardins, sentir o aroma das roseiras e dos jasmins que lembravam a paisagem rústica de minha terra. Frequentava as feiras livres para não esquecer o rosto dos agricultores que havia deixado em Serraria e Arara.
Mais que de repente, a cidade deixou de nos pertencer. As casas perderam o encanto e se tornaram melancólicas, com aspectos soturnos e tristes. Onde havia palacetes de janelas abertas e sorrisos na calçada, surgiram fantasmas cobertos de lodo e tristeza.
Antes era a cidade com jardins sempre em floração, perfumada pela flor-de-paraíso, buquê-de-noiva, manjericões, plantas ornamentais de muitas espécies e trepadeiras. Aspergida pela brisa do rio Sanhauá e do mar, a cidade transformou-se em esqueletos de marquises.
A cidade era iluminada pela luz da lua, o verde estava nos quintais e praças. Olhando-a com olhos atentos, ter-se-ia uma paisagem que parecia uma floresta. As praças e jardins infestados de begônias, roseiras, acácia ferrinha, fruteiras diversas espécies e flamboyants davam o tom urbano-rural e ameno que deixavam a todos, sobretudo os turistas, de olhos arregalados por causa da esplendorosa paisagem verde.
Sem deslocar-se para longe, deparava-me com manacá, pau-ferro, embaúba e pau-d’arco amarelo ou roxo que enchiam os olhos.
Andando na direção das praias, sem ir muito longe, no caminho havia cajueiros de pequeno porte com sombras, oferecendo frutos miúdos e azedos. As fruteiras que inundavam os quintais, praças e alamedas davam a sensação de não ter saído de Serraria, por isso gostava de caminhar pelas ruas do bairro de Tambiá, onde morava, e outros lugares que chamamos centro da cidade. Catava para comer os oitis na Praça da Independência, os jambeiros e as mangueiras que se esparramavam pelas calçadas. Olhava de longe as pitangas nos jardins, sentindo na boca o seu sabor.
Mesmo na paisagem calma e atraente de então, os carros e a movimentação das ruas me amedrontavam. Foi um tempo quando desejei voltar para minha terra.
Em Serraria, andava com quicé de faca na cintura; vindo morar nesta cidade, tentei manter esse costume. Residindo no bairro de Tambiá, para me resguardar de malfazejos, falava e percorria as ruas como um camponês. Sem que ninguém percebesse, espiava o céu com sua opulência de cores e luzes, espairecendo nas noites escutando a música do vento, quando espichava os olhos para observar as pessoas e as garças na lagoa do Parque Solon de Lucena ou quando, na boca da noite, estando na Praça da Independência, dava-me a sensação de estar em Serraria, não esquecia o pequeno trinchete que me acompanhava escondido nos cós da calça, mesmo que a vontade fosse carregar na cintura uma faca de arrasto como os carreiros.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Espiritualidade da arte
Se com a escultura e a pintura o homem registrou a vida desde os tempos remotos, na literatura colocou a alma em maior extensão. Deixou o provisório para viver a dimensão da espiritualidade emanada da Arte. O Cântico dos Cânticos apresenta a supremacia na revelação da alma humana, assim como A Divina Comédia apresenta os caminhos para o conhecimento da vida em todas suas dimensões. A Capela Sistina pintada por Michelangelo é a expressão suprema da Arte, assim como são os girassóis de Van Gogh.
A Arte resgata a existência humana, humaniza a vida devastada pela dor e revitaliza o prazer de viver. A arte embeleza a vida com a paz que conduz, e faz a pessoa refletir seu próprio viver para encontrar a paz. A espiritualidade encontrada nas artes ajuda olhar o ponto luminoso no futuro da vida.
Na perspectiva de observar a Arte como instrumento da espiritualidade, o Cântico dos Cânticos revela a superioridade da poesia mística de conotação amorosa na construção do relacionamento entre pessoas.
Arte e espiritualidade se interligam. No Convento São Francisco essa interligação é visível nas suas capelas, nos corredores, na estrutura do cáustico e na abundância do verde nos seus extensos jardins com plantações nativas.
O poeta e cardeal português José Tolentino Mendonça quando falou da revelação sobre arte e espiritualidade cristã, assim se expressou: “A literatura, a arte ajuda-nos a perceber a importância do provisório como lugar de verdade, de autenticidade, como caminho para viver a espiritualidade”. Ele recordava em texto sobre espiritualidade na poesia mística que “os grandes amores são lugares de uma grande busca, mais do que fusão”.
A arte ajuda iluminar a vida com muitos solares. Nessa paisagem luminosa que a poesia e as artes criam, somos revelados na imagem suprema do Divino, às vezes escondidos aos olhos, porque Deus é Poesia. As vezes a poesia se esconde para melhor nos atrair.
Quando encontramos a beleza na Poesia, enfim, nas Artes, é ao próprio Deus que encontramos. O homem é uma obra de arte de Deus, o mesmo Deus que se fez presente com Jesus. Por isso devemos armar a Deus como amamos as Artes, a Poesia e os nossos semelhantes.
Os caminhos da mística levam o homem à transformação da alma. O místico é um arquiteto do sentimento humano. Muitos conseguem transformar esse sentir em algo estético, vivo e profundo.
Antigas construções carregam essa visão mítica. O convento franciscano da Paraíba mostra isso. Para sentir essa energia embalada pelas suas paisagens de arbustos ou pedra calcárea que integram seu conjunto, basta caminhar lentamente pelos corredores, olhar o mundo pelas janelas ou percorrer as alamedas para sentir o ruflar das pequenas folhas das árvores e das palmeiras. Ali tem a presente de Deus.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Matrimônio e diaconato permanente
Quando a Igreja lembra as seis décadas da instalação do Concilio Vaticano II (1963-1965), oportuno uma reflexão sobre temas que foram discutidas neste Conclave, porque revelou frutos que deram frutos.
A restauração do Diaconato Permanente mais de mil anos depois foi um dos frutos que o Concilio proporcionou a Igreja vivenciar.
Quanto completou mais de cinco décadas das primeiras ordenações na Paraíba, é oportuno uma reflexão por parte da Comissão Arquidiocesana dos Diáconos Permanente e da própria Arquidiocese sobre a caminhada dos diáconos casados e seu efetivo papel no processo de evangelização, notadamente no serviço da Palavra, para os Serviços do altar e da Caridade. Talvez refletir também sobre os Sacramentos do Matrimônio e da Ordem.
Nos primeiros diáconos ordenados na Paraíba foram Ladislau Nogueira de Lima e José Lira de Sousa, ambos da Diocese de Campina Grande, ordenados a 16 de dezembro de 1969. Diácono Manoel Xavier de Araújo, Carlos Peixoto de Vasconcelos, José Ferreira de Sousa e Antônio Basílio da Silva, da Arquidiocese da Paraíba, foram ordenados no dia 11 de janeiro 1970.
Olhando para estes homens casados que dedicaram suas vidas aos serviços da Igreja, vemos que, por intermédio dos sacramentos recebidos, contribuíram para a edificar Igreja dos pobres. Realizaram neste percurso um recíproco enriquecimento familiar – “igreja doméstica” – e comunidade “eclesial”. Mesmo que em algumas situações que o momento exige, diáconos se voltam para manifestações e celebrações pomposas. Na parte principal de seus trabalhos enquanto ministros ordenados, devem estar no meio do povo, como devem ser os pastores com seus cajados.
Sempre é salutar uma reflexão sobre o caminhar do esposo e da esposa, no crescimento mútuo de fidelidade ao sacramento por ambos recebidos. É possível o casal viver de forma modelar na comunidade, sendo a presença viva de Cristo Jesus Servidor.
A acolhida da mudança para o estado eclesial do esposo é feita em concordância da esposa, como vocação ao serviço da Igreja, nunca como uma concorrência própria. Daí ser a esposa portadora, para ele, de evocações estimulantes nos momentos de desânimos ou cansaço.
O diaconato permanente é ampliado com a dimensão espiritual do matrimônio, pois a união conjugal tem efeito construtivo na realização do ministério diaconal. Com a imposição das mãos do bispo sobre o diácono, a mulher deste, implicitamente, participa do ministério sacramental exercido por ele.
A esposa do diácono é alicerce que o faz forte, por isso ajuda se manter firme no exercício do ministério para o qual foi chamado.
Há pouco mais de 15 ano ordenado diácono, percebo quanto foi importante formar parceria com a esposa no caminhar e no serviço inspirado em Cristo Servo para o exercício da nossa diaconia, sem nunca estar em oposição aos encargos e deveres da vida matrimonial, familiar e profissional.
O diácono planta a semente da Igreja pré-eucarística na comunidade onde serve e o padre para dá visibilidade a presença de Cristo Jesus místico, no pão e no vinho que consagra, quando administra os sacramentos da reconciliação e da unção dos enfermos. O diácono aproxima os fiéis do banquete sagrado.
O esposo diácono responde ao chamado de Deus, como uma extensão da vocação conjugal. Por isso, a ordenação é um dom concedido ao esposo e com sua esposa se coloca a serviço de Deus na pessoa do próximo, o que enriquece a comunhão da família e consequentemente, edifica a igreja familiar e comunitária.
Percebe-se que o “diácono casado”, vive a dupla sacramentalidade, consolidando, com a esposa, formando a “Igreja Servidora e Missionária”, ambos dando testemunho do Evangelho de Jesus Cristo, que é Caminho, Verdade e Vida.
Quantas vezes o cansaço, a fadiga, o uso de parte do orçamento doméstico para as despesas no exercício de nossas atividades na comunidade (não recebemos côngrua) e em muitos casos a falta de acolhimento por parte da Igreja, nos levam a pensar desistir, mas são as esposas quem nos seguram pela mão.
Há necessidade de aprofundar sobre a presença do diácono na comunidade, junto com o bispo e o pároco, construindo um presbitério de salvação e comunhão, juntamente com os fiéis cristãos.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
O CONVENTO E SEUS MISTÉRIOS
Na década de 1970 Firmo Justino, jornalista que entrou para a Magistratura da Paraíba, retornando às paisagens do Convento São Francisco, numa crônica antológica, disse que foi satisfatório passear pelo maravilhoso conjunto arquitetônico barroco, e convidou a todos para visitar aquele lugar.
Mesmo que fosse uma única vez, narrava, quem olhasse para as velhas paredes carregadas de histórias, as imponentes capelas ornamentadas com belas pinturas e imagens, como também observasse as peças sacras de incomum beleza, além do horto que exala o perfume silvestre, dali sairia com o desejo de retornar.
Na época da visita do meu amigo, o convento tinha sido restaurado, estava ainda mais imponente e carregava, como ainda mantém, o encantamento do magnífico conjunto arquitetônico barroco. Quem passear por seus longos corredores de largas paredes, pisar no assoalho de madeira dura e olhar as peças ornamentais que a mão humana moldou, silencia e escuta a quietude do lugar.
Se eu fosse rei ou profeta, assim como nas estórias que ouvia no tempo de criança no nosso sítio, em Serraria, recomendava aos professores a levar seus alunos a este maravilhoso local, onde estão guardadas muitas histórias que ajudam a entender o passado da Paraíba, porque falam como um livro aberto.
Para amar o lugar onde nascemos, é por demais importante conhecer sua história, sabiamente profetizava Nathanael Alves.
Estive pela primeira vez no São Francisco, em 1979. Foi quando, por inspiração de Dom José Maria Pires, o poeta Waldemar José Solha e o maestro José Kaplan montaram a “Cantata pra Alagamar”, apresentada numa noite que me deixou abismado pela aclamação ao espetáculo e pela imponência do conjunto arquitetônico onde o evento aconteceu.
Então, após as revelações de Firmo Justino, levei minha filha Angélica, para conhecer aquela inconfundível obra de arte. Grande foi sua admiração, apesar dos nove anos de idade. Pouco indagava, mas o semblante e os olhos arregalados dela davam pistas de seu encantamento ao contemplar detalhes dos corredores, as grossas paredes e as imagens pintadas no teto das capelas.
Todas as vezes que volto àquele lugar, vagueio na imaginação colhendo remotas imagens e histórias que os livros abordam, desde a fixação das pedras sobre pedras, conduzidas por muque humano até chegar a impotente edificação que conhecemos. Entre as paredes, o silêncio de Deus se manifesta para nós.
Em cada recanto observava-se misterioso silêncio. O vento entrando pelos janelões, espalhando-se pelos móveis antigos, caminha ao nosso lado durante o passeio pelas celas, extensos corredores e o horto florestal recebe a todos com seu frescor.
Meu amigo Firmo tinha razão quando nos convidou a visitar o convento franciscano, e olhar por dentro a fabulosa obra de arte.
O prédio com a torre apontando para o céu, o cruzeiro que nos recebe à entrada e seus arredores, tudo espalham emoções. Essas imagens carregamos pelo resto da vida depois uma visita.
– Não é uma beleza?…
A menina respondeu com acena da cabeça e curtas palavras que tento relembrar.
Quase três décadas depois, a minha filha conduziu meu neto para igual visita.
O convento franciscano continua com seus mistérios, criando emoções aos que ali se dirigem, mesmo em tenra idade.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
ORAÇÃO E POESIA
Quase sempre começo a trabalhar na madrugada coberta com seu véu do amanhecer, para esperar o sol despontar por entre casas e edifícios que me consentem avistar o horizonte amarelado sobre o mar, mesmo distante. Tenho como hábito terminar cedo os afazeres do dia para observar o sol no entardecer, quando me é permitido olhar, mesmo que seja uma nesga ao longo da rua.
Desde o tempo de criança me aconselharam a responder aos apelos da Natureza como dádivas celestiais, sabendo que o sol nasce para os bons e os maus.
Poetas relevados na paisagem espiritual emanada da Natureza sabem observar o sol nascente e recolhe do sol poente os raios de inspiração para o repouso da noite.
Poeta que não se inspira na musa para a compor seus poemas, essa musa maior chamada de Natureza, sua composição corre o risco de se tornar um amontoamento de palavras. A Natureza é poesia, porque a Natureza é composição de Deus. Deus é poesia. Por isso, o nascer e o entardecer do dia carregam consigo toda a poesia divinal.
Mesmo sendo criação do Divino, em dias umedecidos pela chuva, a madrugada e o entardecer são notados em seus encantos, porque carregam consigo beleza e inspiração, como iguais aos dias esbraseados pelo Sol. Depende do estado da alma no momento quando observamos.
A hora do meio dia tem sua poesia, sua beleza e inspiraram, mesmo sem carregar consigo a suavidade do amanhecer, nem a candura do entardecer com seus pássaros que buscam o agasalho em árvores para o repouso na noite. Quando o homem se recolhe para o descanso noturno, e com ele as imagens poéticas que o dia possibilitou recolher, esse momento é sublime aos olhos de Deus.
A babugem rejuvenesce com o frescor da madrugada. Eu carrego comigo o amanhecer do campo, não esqueço dos pássaros quando despertavam com a vegetação aberta pelo orvalho rejuvenescedor no alvorecer. Em Tapuio, era inesquecível o momento quando o gado mugia aos raios do sol que apareciam por entre os galhos dos arbustos, a luz que se esparravam pelas encostas e se espalhavam pelos baixios.
Eu sou um homem madrugador, hábito que aprendi quando criança com meu pai. Me tornei um madrugador como um camponês que se reconhece pelo modo de andar e de estar nas solenidades. Um camponês que mais observa e menos fala. Recordo as palavras atribuídas a Rui Barbosa quando afirmou que as pessoas devem dormir cedo como pássaros e acordar antes do sol despontar.
Sem nunca ter lido algum texto deste homem considerado a “Águia de Haia”, mas que conhecia de ouvir dizer, meu pai começava o dia como Rui orientava. Nas madrugadas silenciosas de Tapuio, sítio onde morava, sem que a brisa o incomodasse, com chapéu à cabeça, percorria o curral, observava a lavoura sorrindo com a brisa fresca. Silencioso, ele contemplava os poemas que a Natureza construía. Por isso papai nunca desejou sair do lugar onde nasceu, cresceu e construiu a paisagem que alimentou sua numerosa familiar, se é que podemos chamar de numerosa uma prole de doze filhos.
Vindo morar nesta cidade, eu trouxe comigo a mania do madrugador.
Quando morava em Tambiá, tinha o privilégio de escutar a brisa que umedecia as plantas do horto florestal da Bica. Ao sol do entardecer, conhecia os raios que abriam como espadas os galhos das árvores.
Era um tempo, no começo dos anos de 1970, em que podíamos andar pelas ruas com a camisa aberta ao peito, meditar recostado ao tronco do ipê sem medo de ter assaltado. Os arredores da fonte da Bica permitiam esse deleite.
Vivia nesse restinho do clima de paz nos anos de 1970 na capital de nosso Estado, e nos espaços verdes das praças e na Bica me abastecia das lembranças de minha terra. Sem nunca esquecer as madrugadas iluminadas de Tapuio, nem tão pouco as tardes quando corria em cavalo de pau pelo terreiro, para recolher a boiada imaginária.
Ao ler poemas ou recitar orações, em cada verso, o silêncio nos fala. As orações e certos poemas colocam música no meu silêncio. Entre uma palavra e outra, uma voz que somente nós ouvimos, nos fala de coisas que podemos transformar em poema. Silêncio em que Fernando Pessoa (Ricardo Reis) encontrava “um Ser qualquer, alheio a nós”. Feliz quem o encontra.
As manhãs e os crepúsculos contêm orações. Gosto de observar esses momentos porque trazem emoção e fecundíssima visão que ajudam a mitigar a penúria do poeta. Os silêncios desses momentos contêm orações. Nos intervalos do silêncio de cada amanhecer ou no final da tarde, precisamos ouvir a voz da emoção dentro de nós. Nas duas ocasiões, silencioso, faço minhas orações e recito meus poemas prediletos, que foram publicados por outros poetas.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
ARTE E ESPIRITUALIDADE
Sempre termino o percurso pelos arredores do Convento São Francisco com a alma aliviada. Naquele conjunto arquitetônico de estilo barroco composto de capelas exuberantes, largos corredores, portas e janelas abertas aos horizontes a nos envolver na silenciosa mística emanada do lugar, recolho a paz do seu silêncio.
Com toda sua estrutura e adornos, rodeado da paisagem verde, o Conjunto Arquitetônico Convento São Francisco é uma obra de arte.
São milhares de anos que a Arte convive com o homem ou o homem buscar na Arte a maneira de sobreviver. O homem se rodeia de diferentes manifestações da arte para acalmar o espírito. Primeiro gravou na pedra sinais para se comunicar e com o tempo descobriu a força dessas manifestações.
Caminham comigo a beleza dos antigos altares e as imagens de santos esculpidas em pedra calcária distribuídas pela Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Serraria, um prédio de grossas paredes e quatro pilastras estilo romano erguidas em simetria, dando sustentação ao teto e beleza incontestável na sua grandiosidade. Encantava os olhos do menino e hoje as revejo com a alegria infantil.
Mais de seis décadas depois repito os gestos quando ali chego à minha terra. Ando vagaroso por entre as colunas e olho para entender o ambiente místico do templo religioso onde fiz minhas primeiras incursões ao mundo místico das igrejas de construções arquitetônicas do século passado.
No entardecer da vida, muitas vezes volto ao São Francisco e à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, do lugar onde nasci, em busca suas paisagens para aliviar a ansiedade e conversar com os personagens que carrego comigo.
Meninos trelosos, em muitas oportunidades, subíamos à torre da Igreja de Serraria sem que o padre percebesse. Gostava de observar a vastidão em redor da cidade até onde a vista alcançava. Olhando para o lado poente, avistava Arara, ao sul, a cidade de Areia que se destacava por entre as serras e, virando a vista para lado nascente, ali perto estava Borborema e o vasto mundo em demanda de Guarabira.
Essas paisagens me encantam, como me encantava o maquinário do relógio de procedência alemã e o grande sino com suas largas bordas que possibilitava escutar seu badalar no nosso sítio, a dois quilômetros de distância.
As colunas romanas do Convento São Francisco me fazem lembrar das existentes na Igreja de Serraria, igualmente belas, feitas com arte que traduz espiritualidade. Na tarde enquanto andava sem pressa pelos corredores do convento franciscano, as paisagens de minha terra voltaram como consolo.
Sempre retorno à Serraria, mesmo que seja na imaginação. Porque Serraria é o meu território livre, onde idealizo meus devaneios. Na arte espalhada em muitos recantos destes dois lugares está o elixir para a alma e o rejuvenescimento.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
A VIDA VEM DA TERRA
Chegou às nossas mãos, e suponho que tenha chegado a outros companheiros, carta convite do padre Wancelei Cunha de Oliveira, vigário da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, localizada no Bairro do Varadouro, conclamando a todos para se integrar à Caminhada da Pastoral da Terra da Arquidiocese da Paraíba, que acontecerá entre os dias 19 e 20 de outubro deste ano na área da Forânia Agreste.
Uma bonita iniciativa que no passado teve tempos de efervescência, mas houve um arrefecimento, talvez levado pelo desânimo, culminando com o quase esquecimento, apesar de abnegados cristãos comprometidos terem persistido na realização deste importante evento de mobilização e conscientização.
Esse fervor pela Caminhada da Terra chega em momento oportuno, porque o Papa Francisco convida para a construção de um novo humanismo, com clara opção pelos pobres e abandonados, à semelhança do povo de Israel, ainda hoje símbolo de todos os pobres. Uma proposta regada com sementes, que a Arquidiocese da Paraíba deve realizar com mais ênfase. Ainda mais agora, com cajado do pastor vindo das terras potiguares esturricadas, para se juntar aos homens e mulheres, missionários de “boa vontade”. Juntos, possamos criar ambiente para afugentar o mal que afeta a sociedade, a família e até a comunidade de crentes.
A Caminhada da Terra deste ano pode se constituir em um grande momento de reflexão, um eco que faça desabrochar novas atitudes para se junta ao apelo do papa em favor do novo humanismo com mais justiça, eliminando barreiras que discriminam, exploram e oprimem.
Temos pessoas que dedicam seu tempo à causa dos pobres! Como os admiro e me sinto pequeno diante de tamanha fé, mesmo sendo um homem esperançoso.
Em nossa Igreja, até quando os pastores silenciam, fiéis se mantêm na inabalável persistência, tudo por causa do Reino de Deus. Como são felizes! A alegria é o que mais conta.
Sou diácono porque me sinto alegre com o que me cabe realizar, mesmo com dispêndio que reduz meu orçamento familiar mensal.
Como me alegro vendo a persistência de grupos das Comunidades Eclesiais de Base que não desistem, às vezes enfrentando olhares contrários.
Mas voltemos à carta em foco.
Tenhamos certeza, tudo vem da terra. A Terra Mãe nos oferece alimentos e a vida. Traz energia e alimento para o nosso espírito. Cuidar da terra, conduzir os sonhos que transformam essa terra seca em produtiva, é dever de todos nós.
O estímulo a essa iniciativa merece nossa acolhida. É momento para a avaliação do novo humanismo que o Papa Francisco propõe. Sejamos nós, ministros ordenados, protagonistas do tempo venturoso que se aproxima. O pastor deve ir à frente de suas ovelhas. Fazer diferente é colocar em prática os ensinamentos de Jesus.
Onde está o homem que sofre, ali esteja o pastor com seu cajado para fazer suscitar novos caminhos, novos horizontes.
A realização da Caminhada da Pastoral da Terra suscita esse momento de aprofundar a efetiva presença da Igreja na luta sobre questões pertinentes à vida. A vida que brota da terra. A terra regada com o sangue dos mártires.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
JESUS DIÁCONO
Jesus é diácono por excelência, foi o primeiro a servir em plenitude aos que dele se aproximavam. Desde os primeiros momentos quando apresentava o Reino de Deus como essencial na vida das pessoas, no sentido de exercitar a koinonia cristã em sua perfeição. Na comunidade de seguidores, constituiu-se no primeiro diácono. A instituição da Eucaristia, a Crucificação e a Ressureição marcam gestos de suprema diaconia. Ele, servidor, abraçou com fervor o projeto de Pai.
A diaconia de Jesus se concretiza, plenamente, na Cruz, de onde brotaram os caminhos da Salvação, tornando-nos participante de sua vida.
O objetivo da diaconia de Jesus é a humanidade, sobretudo com olhar para os pobres, porque Ele é o Servo por excelência. Cristo é servidor da unidade. E diácono da ternura. Uma ternura que repercute até os dias atuais, eternizada em gestos e atitude de seguidores espalhados por todo o Universo.
Servo da solidariedade, bom samaritano, Jesus colocou sua vida a serviço dos homens, não hesitou lavar os pés, servir e cear com os Apóstolos (Mc 14, 22-24; Lc 22,17-20; Mc 10,43-45; Mt 10-24). A cada celebração da Eucaristia é repetido o gesto para cada um de nós, no Pão e no Vinho partilhados sua presença e sua energia que nos impulsionam e alimentam.
Pão partilhado, vidas renovadas. Renovadas na esperança e na crença no pedaço de pão e no gole de vinho purificados. Vidas conduzidas pela fé.
O diácono dos tempos passados e de hoje quando olha para Jesus, supremo diácono, é convocado a levar a mensagem deste a todos os recantos. Um serviço executado pela fé, na esperança com caridade, porque, como Ele disse, quem faz isso “é a mim que o fazei”.
Revela o Papa Francisco em momento de inspiração, se o diácono deseja seguir a Jesus, deve plenamente imitá-lo. Ser humilde de coração e compreensivo em relação ao povo, além de saber preservar a fé, guardar o que lhe foi confiado, evitar conversas frívolas (1Tm 6,20), estar disponível a escutar o povo.
O belo é um ideal difícil de ser conquistado. Sendo o mais belo personagem da História da humanidade, Jesus deu beleza estética na ternura do diácono.
Assim como Jesus, que foi diácono no silêncio, sejamos nós, diáconos, os olhos da Igreja para não esqueça os pobres, sobretudo os oprimidos.
O poeta Jorge Luís Borges afirmou em um de seu livro que todo o presente é verdadeiro e que “Deus, de Quem recebemos o mundo, recebe de Suas mãos criaturas do mundo”.
Meditando sobre este pensamento do poeta argentino que perdeu a visão para melhor ver com os olhos do coração, cheguei a uma conclusão de que devemos trabalhar as criaturas para revolver a Deus em estágio de compreensão do mistério da vida e da morte, da Eucaristia e da Ressureição.
Fiquei a pensar que o homem é capaz de desenhar o mundo, e ao longo do tempo povoar os espaços com obras e ações capazes de contribuir para melhorar a vida das pessoas, seja das cidades ou das montanhas. A missão é a mesma.
Somente podemos dar aos irmãos aquilo que captamos do coração e revelamos pelas palavras, o que não é menos íntimo, a ser útil no hoje e no amanhã. “Só podemos dar o amor, do qual todas as coisas são símbolos”, afirmou o Borges, em julho de 1968.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Cantata para Dom José
A vida pastoral de Dom José Maria Pires, na Paraíba, foi de constante conversão. Dom José dizia que tudo o que vivenciou na Paraíba ajudou na sua conversão. Revelou que o Nordeste o fez se tornar uma pessoa mais simples.
Sua atuação na Igreja da Paraíba daria uma cantata, à semelhança da Cantata pra Alagamar, que ajudou a escrever em 1979, juntamente com o poeta Waldemar José Solha e o maestro José Kaplan.
Ele teve uma vida modelada pelo vento que se espalhava a partir Roma, ao final do Concílio Vaticano II. Ele estendia as mãos aos que estavam com a panela vazia, e éramos imitadores de seus gestos. Suas práticas nos convertiam.
Aprendemos muito com esse bispo que colocava Jesus como o centro de sua caminhada, que meditava, ensinava e vivia os Evangelhos.
Devido à sua aproximação com Dom Helder Câmara – o bispo vermelho, na visão dos militares que governaram o país –, Dom José passou perrengues, sem nunca arredar pé de suas convicções.
Gostaria de abordar algumas passagens da vida dele depois que decidiu ficar ao lado dos marginalizados, das famílias que residiam no campo e das periferias das cidades.
Na Carta de despedida da Paraíba, ele narrou alguns fatos que continuam na memória de muita gente.
Na luta para evitar o despejo de famílias agricultoras, residentes nas terras das usinas que antes serviram de palco para os romances de José Lins do Rego, testemunhou as agressões.
Na antevéspera do primeiro Natal que passou na Paraíba, no ano de 1966, tomou conhecimento de que um tratorista havia derrubado a casa de um agricultor para no lugar plantar cana. Ao final do dia, quando o marido chegou, estavam a mulher e os filhos debaixo de uma árvore com os poucos objetos que tinham.
Em outra ocasião, chegou aos seus ouvidos a informação de que um usineiro, em Caaporã, estava cercando as terras e passou o arame farpado por dentro da casa de uma viúva. O marido dela tinha participado das Ligas
Camponeses, mas apavorado pelas perseguições depois do golpe de 1964, enforcou-se. Ele foi observar se era verdade o que estavam contando. Lá na residência adulterada, constatou que tinham feito um buraco na parede e atravessaram o arame pela sala da casa.
Estes e outros fatos constam na Mensagem dirigida ao povo paraibano. Carta que merece ser lida e meditada pelo nosso clero.
Como parte da formação de novos seminaristas, com a efetiva participação do Padre José Comblin e outros presbíteros, Dom José implantou a metodologia que chamou de “teologia da enxada”. Foi um momento importante na formação dos futuros padres. Os seminaristas tinham o contato direto com a realidade do campo e das famílias, sentindo “na pele” o que estes passavam sem emprego, sem a terra para cultivar, sem abrigo e sem comida.
A Pastoral da Terra, as Comunidades Eclesiais de Base e outros movimentos e pastorais proporcionavam oportunidade para que os “prediletos” de Jesus pudessem ter voz. Se há trinta anos isso era possível, agora essa prática de formação de novos pastores seria bem aceita?
Cada época tem suas peculiaridades. Mas acreditamos que nos seus ensinamentos de trinta anos atrás encontraríamos caminhos para nos tornarmos mais sensíveis diante da dor das famílias.
Dom José Maria Pires continua na memória de muita gente. Seu modo simples de pastoreio permanece na mente e nos corações das pessoas simples.
Por uma Igreja sem pompas, mística, com os pés no chinelo, vamos olhar os exemplos de padres que tivemos no passado para colher as boas sementes e renovar nossas práticas de evangelização.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Eudésia: fé e poesia
A mística e a poesia andam juntas, pois vêm da mesma fonte, que é Deus. O poeta é chamado a estabelecer um diálogo com Deus para salvar a carne e a eternidade da alma. A fé é um grande remédio para aliviar a dor quando não há mais esperança.
A poesia e a mística, são dons de Deus que ele dá a quem a escolhe. A poesia é a outra margem do rio, o rio da vida.
Desejo falar de Eudésia Vieira que manifestava sua fé, e buscava aprimorar seu viver a partir da mística que emana dos ensinamentos do Evangelho e dos primeiros seguidores de Jesus.
Quem foi Eudésia Vieira? Natural da cidade de Santa Rita, Eudésia Vieira nasceu no dia 08 de abril de 1884. Foi professora primária e, depois dos 30 anos de idade, mãe, se formou em Medicina, sendo primeira médica da Paraíba. Jornalista, historiadora e poetisa, foi uma mulher com pensamento avançado para seu tempo, sempre lutando pela liberdade de expressão e expondo firmes posicionamentos em artigos e conferências.
Depois de viver os primeiros anos de vida frequentando a Igreja Luterana, por influência de sua primeira professora, converteu-se à Igreja Católica, e tornou-se devota de Nossa Senhora de Caná.
A atuação no campo da Fé, dedicação à Arte e à Medicina conviveram pacificamente. Em décadas reunindo essas três atividades, ela produziu bons frutos. Na vivência da fé, muitas vezes testemunhada, encontrou ingrediente que a tornou mais sensível ao manejo do bisturi e da caneta.
Numa oração à Virgem de Caná, divulgada entre seus conterrâneos, Eudésia exaltou as virtudes de Nossa Senhora, e pediu proteção para as famílias. Como poetisa, também escreveu poemas tendo como tema a exaltação à fé e a esperança. Também compôs o hino de Nossa Senhora da Penha, que foi musicado por Padre José Coutinho. A pedido, escreveu a letra para a comemoração do cinquentenário da instalação da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, de Serraria, executado ainda hoje em momentos festivos.
Seus poemas se destacam ao tempo em que foram lançados, estando a exigir uma nova versão impressa para que as gerações atuais possam descobrir o sentimento de uma pessoa que, com palavras simples, sem rebuscamento, soube abrir seu coração para expressar a força do transcendental na nossa vida. Em seus poemas, atuando na medicina ou exercendo as atividades de historiadora, mostrou que é possível conquistar espaços e ajudar na mudança de vida da comunidade onde residimos.
Eudésia usava palavras que expressava o sentimento mais puro, abria seu coração quando falava e escrevia, por isso seus textos eram bastante apreciados. Mostrava também que era capaz de sentir grandes emoções, talvez mais sinceros e mais próximos da realidade que expressam o coração.
Começou seu trabalho de professora, e logo colocou em prática atividades culturais que marcariam a história da cidade onde residia. Incentivou a prática da leitura entre as crianças e jovens.
Quando morou em Serraria como professora, ao final da primeira década do século XX, agitou a cultura daquela cidade brejeira, compôs versos e editou jornal literário.
A poesia, a pesquisa histórica, a medicina e o movimento feminista na Paraíba têm na pessoa da professora Eudésia Vieira, uma de suas mais legítimas representantes.
Durante muitos anos, ela dedicou-se aos estudos da história da Paraíba e de sua gente, sendo pioneira na luta para colocar a mulher em lugar de destaque na sociedade, num período em que isso parecia impossível.
Em todos os momentos soube, como poucos, conciliar o trabalho intelectual com as atividades que desempenhou durante sua vida, seja como professora, médica ou dona de casa.
A própria Eudésia Vieira contou, sem seu Diário, essa experiência religiosa fora da Igreja Católica, a qual não pertenciam seus pais.
Mesmo que não tenha chegado ao terreno da linguagem profunda da mística de Santa Tereza D’ávila 1614-1622, como Cecilia Meireles 1901-1964, Simone Weil (1909-1943), Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), e mais recente, Adélia Prado (n.1935) e Mariana Ianelli (n.1979), e tantas outras poetisas, a paraibana Eudésia soube revelar a alma mais oura do mundo submerso no distante sentido da vida. O eu-lírico buscando sempre a Deus, mesmo que não se possa ver a face de Deus. Eudésia, como Murilo Mendes, eram médicos, sempre buscando a Deus.
A poesia em toda sua dimensão, a poesia mística, leva luz eterna às pessoas, mesmo os não crentes.
Com sua poesia, às vezes lírica, expressa sentimento capaz de emocionar o mais rude coração. A fé cristã, sem dúvida, a tornou uma médica humanista, mais próxima do povo.
AVE MARIA!
Ave, Maria,
Mãe graciosa
Doce harmonia
Misteriosa.
Teu nome santo,
De mil doçuras,
E’ eterno encanto
Das almas puras
Eu te bendigo,
Cheia de graça,
Risonho abrigo,
Sagrada taça.
Onde sem susto
Deus criador
Deitou o augusto
Vinho do Amor
0 santo engaste
Dos céus — Jesus
Que contemplaste
Morto na cruz
Então bastante
Sofreu tu’alma
Flor deslumbrante
Mimosa palma
E no Calvário
Teu coração
Foi o sacrário
Da redenção
Ave, Maria
Doce piedade
Meiga ambrósia
Da castidade
Eu te saúdo,
Leda e contente,
Meu forte escudo
Resplandecente.
(Fonte: Coletânea de Poetas Paraibanos, Luiz Pinto, 1953, editora Minerva).
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Dom José, 30 anos depois
No dia 23 de maio de 1994, Dom José Maria Pires apresentou à Santa Sé a Carta solicitando sua renúncia, tornando-se Bispo Emérito, quase trinta anos depois de ter chegado para o pastoreio do povo na Paraíba. Ele chegou ao solo paraibano no dia 26 de março de 1966, iniciando uma profícua e inesquecível caminhada, com olhar para as periferias humanas e para os rincões onde o pobre era explorado. A todos estendia a mão, levando a Palavra salvadora.
Nas primeiras linhas da sua Mensagem de despedida, Dom José evocou as palavras de Deus a Moisés, quando é aconselhado a tirar as sandálias dos pés para pisar na terra onde chegava, porque o chão era sagrado. Em situação diferente, imitando a ele, quando tomei posse da Academia Paraibana de Letras, mesmo sendo-me familiar o lugar, prometi que a partir de 09 de fevereiro de 2023, todas as vezes que adentrasse à Casa de Coriolano de Medeiros, limparia a sola dos sapatos em sinal de respeito e admiração pelo piso sagrado da cultura da Paraíba.
A Carta de Dom José é um documento atual e indispensável ao conhecimento de todos, sobretudo do clero, porque contém mensagens, opiniões e diretrizes, que ajudam a compreender nossa caminhada, mesmo com muitos e diferentes desafios.
Três meses depois de chegar à Paraíba, o vento do Concilio Vaticano II estava entranhado na mente e no coração de Dom José. Para sentir e viver com o povo, ele não demorou a se embrenhar pelos rincões dos canaviais e áreas periféricas desta cidade. Estendeu as mãos aos desvalidos e degredados, impregnou-se do cheiro das ovelhas. Por isso as ovelhas tanto o amavam.
Tantas coisas bonitas nos fez conhecer, vivenciar e expandir em quase três décadas de pastoreio. Ele trouxe os leigos para perto da Igreja e confiou a estes a missão de levar Cristo Salvador aonde havia pessoa desanimada. Um exemplo são as Comunidades Eclesiais de Base, as Caminhadas da Pastoral da Terra e tantos outros movimentos e pastorais que ganharam o seu jeito mineiro de atuar.
Vindo dos rincões de Minas Gerais, costumava dizer que a sua “paraibanidade estava cada vez mais comprometida com os pobres”. Quando recebia muxirões, revidava com o afago da mão.
Diante das incompreensões, que foram muitas desde quando chegou, começando pela rejeição à sua negritude, foram muitos os gestos de repulsa a ele, principalmente por parte da elite dos palacetes e das mansões à beira-mar. Mas o povo humilde logo se acostumou com seu jeito. Na sua simplicidade, ao se despedir de nós, escreveu: “se não faltou amor no meu coração, faltou nas palavras, nos gestos, nas atitudes”.
Nada disso, Dom José! O senhor é um Pai espiritual que jamais esqueceremos.
Quando tomei conhecimento da presença de Dom José na Paraíba, ainda perambulava entre Serraria e Arara, lugar onde nasci e morei até o primeiro ano da década de 1970. Mas foi como jornalista que me aproximei dele e com atenção acompanhava suas pregações.
Minha primeira conversa com ele foi quando o poeta e escritor Waldemar José Solha publicou o livro A Verdadeira Estória de Jesus (1979), no qual sugere que Jesus nunca existiu. Obra literária de ficção, que teve enorme repercussão no seio da Igreja. Fui escalado pelo jornal O Norte para entrevistar Dom José sobre o assunto. Sua resposta pode até não ter convertido Solha, mas, depois desse episódio, tornaram-se amigos e, juntos, mais a parceria do maestro judeu José Kaplan, escreveram a Cantata pra Alagamar, em 1979.
“O Bispo tem que ser muito pai”: esta frase me acompanha desde quando li a sua Mensagem de despedida, em novembro de 1995, quando foi publicada. Para mim, esse “ser pai” não é dirigido a todo o clero. Precisamos ser imitadores de Cristo, Pai Bom Pastor. Um pai que está disponível a ouvir e atender as ovelhas, mesmo quando esteja cansado. O pai que espera ansioso o filho chegar da rua, o pai que acorda à noite para ver como o filho dorme, o pai que fica sol a sol trabalhando para colocar o pão na mesa.
Quando lembramos dele se despedindo de nós, pois em novembro de 2025 devemos lembrar os trinta anos de sua despedida, fica a sugestão se realizar uma reflexão sobre sua obra missionária. Certamente muito nos ajudaria na caminhada de padre e diáconos.
As palavras dele naquela Mensagem são ternas, sábias e profundas, atuais, e continuam atuais.
Tantas coisas fez por nós, por isso Dom José continuará na memória de muitos.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
O último olhar de mamãe
Aquela noite da agonia derradeira, quando contemplei o rosto sereno de minha mãe na cama do hospital, segurando meu braço, ela murmurou com os lábios trêmulos “que Deus te abençoe”, e fui abençoado com a meiguice do seu olhar para o resto de minha vida.
Eu sentia o fim de sua vida, mas tentei não repassar desânimo aos que estavam no hospital nem àqueles que ficaram em casa. Caso não tenha sido um bom filho, se beijos não lhe ofereci em toda a nossa convivência, naquele momento recordava tudo o que passamos juntos. Foi um olhar demorado e silencioso, entre mãe e filho, como uma despedida. Deitada na maca envolta em lençóis brancos, uma despedida que durou alguns segundos, acariciei seu braço. Sinto a maciei de sua pele e seu olhar para mim, como a dizer “Deus te abençoe, meu filho”. Chorei silencioso, andando pelos corredores do hospital fúnebre. Novamente choro recordando nosso adeus num “até mais tarde”, para o reencontro na primavera celestial.
Nossos olhares nunca se separaram, a não ser no dia de sua despedida derradeira, naquela tarde longa e silenciosa, enquanto o sol se abaixava por trás de longínquas serras, quando a brisa morna da Primavera se espalhava sobre nós, numa aspersão divinal enquanto a terra recebia mamãe de volta para fazê-la rebrotar no Paraíso.
Acompanhei silencioso até a cidade de Arara o carro fúnebre que transportava o esquife com o corpo da minha mãe. Foram três horas amargas durante o percurso, enquanto recordava toda nossa história e me lembrava de papai que tempos atrás fez o mesmo caminho num carro da funerária.
Somente quando colocaram o caixão na Igreja de Nossa Senhora da Piedade, para as despedidas finais, tive a certeza de que ela estava a caminho do encontro com os entes queridos adormecidos.
Continuei calado.
Concluídas as exéquias, o féretro seguiu pelas ruas nos braços de amigos e familiares, retribuindo a amizade de tantos anos em que se reuniram ao nosso clamor, enquanto o sol perto do horizonte desfolhava luz sobre nossas cabeças e refletia nos lados dourados do caixão.
Os raios do sol, como que se despedindo de mamãe, penetravam no túmulo enquanto o caixão era depositado, depois de orações, seguindo de saraivada das palmas vindas dos que rodeavam o sepulcro, e flores eram colocadas sobre o túmulo da família.
Naquele momento, fechei os olhos e desenharam-se muitas das cenas que passamos juntos, enquanto seu corpo era depositado na sepultura. Não chorei para poder consolar os que vertiam enxurradas de lágrimas. Mas agora, choro calado, quando me lembro de tudo aquilo.
Depois daquele momento, afastado no tempo, algumas vezes me recolho ao silêncio para sufocar a dor.
Na minha solidão, desenham-se as imagens destes entes queridos, guardadas e relembradas, diariamente, como estrelas a consolar-me e enxaguar as minhas silenciosas lágrimas que não consigo reter.
Durante chuvas torrenciais e/ou na aragem do verão sobre os pedregulhos, caminhei sozinho. Nas noites escuras, acendia um fósforo e caminhava. Agarrando-me às lembranças que me dão sobrevida, ultrapassei tempestades, dias longos e noites esticadas, fazendo a reconstrução de nossa história.
Quando tudo me parecia escuro e distante, sem paz e silêncio torturante, lembrava meus pais e, lentamente, surgia uma luz para a contemplação. A contemplação revelada nos gestos caritativos que afloraram sem que esperasse tão cedo obter os resultados. A minha fé tem removido os pedregulhos dos meus caminhos.
Depois que papai e mamãe morreram, meu caminhar ficou noturno e ainda mais silencioso. Parece-me que distante velam por nós, seus filhos, netos e bisnetos.
Mamãe, mulher viúva que nunca desistiu dos filhos, manteve-se ativa em seus afazeres domésticos e no trabalho para criar os filhos. Andou devagar, mas andou. Enquanto andava, o tempo fluía e sua mão nos agasalhava, abençoando-nos todos os dias.
Mamãe viveu para consolar a todos. Ensinou a nunca esquecer nosso papai, apesar de tudo, dizia-nos. Repetia para que nunca deixássemos de pedir a benção e de reverenciar nosso pai.
Nunca deixei de me sentir necessitado da benção de ambos e, quanto mais se distanciam no tempo as despedidas, continuei esperando que abrissem para mim a porta da casa sem parede.
Essas duas árvores queridas, que me deram a vida e sombra, as recordo com saudade. Como convém aos mortos, no silêncio, faço a chamada de seus nomes.
Ambos, meu pai e minha mãe, sim, são duas sombras queridas, cujas almas nas alturas velam por nós, seus filhos, netos e bisnetos.
Deles conservei lembranças, boas ou tormentosas, mas regadas pelo vento espiritual, e recordadas não apenas quando deposito flores em suas sepulturas, mas quando necessito dos seus abraços e de suas benções.
Meu pai e minha mãe ataram as duas pontas do laço de minha trajetória de vida.
Alimentam-me nas minhas fraquezas.
PS.: Este texto é parte do livro “Tapuio – do nascer ao entardecer”, de 2020, publicado para lembrar os 65 anos de minha vida, que agora lanço mão no Dia das Mães, para registrar a minha saudade de mais de 25 anos da partida de mamãe à eternidade.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
Uma Carta do Papa
Em carta divulgada no dia 2 deste mês (quinta-feira), dirigida ao Encontro Internacional “Os Párocos em prol do Sínodo”, que acontece em Roma, o Papa Francisco revela seu desejo de contar com os párocos para que a Igreja chegue aos necessitados das periferias dos grandes centros urbanos e no campo.
A Carta aponta caminhos e vislumbra um sol a brilhar mesmo que distante, como uma luz no caminhar de todos. O papa recorda do seu tempo em Buenos Aires, quando estava à frente de uma Igreja cheia de desafios. Revela ter conhecido todas as paróquias da sua Arquidiocese, mesmo os espaços pequenos ou envelhecidos, com seus desafios, constatando que padres celebravam “debaixo duma arvore, misturando-se o canto dos pássaros com as vozes de tantas crianças”.
Quando o papa toca nesse ponto, lembro dos gestos de Dom José Maria Pires e Dom Marcelo Carvalheira que se sentavam à sombra de mangueiras para falar do Evangelho. Permitam citar Padre Ibiapina que há quase 150 anos acolhia multidões de famintos debaixo das baraúnas ou latadas cobertas com folhas de carnaúba, carregado do mesmo sentimento do Mestre Bom-Pastor. Consintam citar, modéstia à parte, meu irmão de sangue, Padre Gaspar. Este percorre os campos da região do Brejo e, quando necessário, debaixo de cajueiros ou recostado na parede de uma tapera ou lajedo, celebra a esperança que brota da Palavra Sagrada.
Desde meu tempo de criança ouvia falar do quanto é bom quando se tem por perto um padre alegre. Os conheci no passado e os tenho agora por perto. Padre que sente alegria com o seu trabalho e nos faz sentir essa alegria.
A mensagem do papa na Carta, repito, deve ser lida e relida em voz alto e em grupo. “Os párocos conhecem tudo isso muito bem… Conhecem de perto a vida do povo de Deus, as suas fadigas e alegrias, as suas carências e riquezas”, escreveu.
No entender de Francisco, é por isso que uma Igreja sinodal tem necessidade dos seus párocos: “sem eles, nunca poderemos aprender a caminhar juntos, nunca poderemos embocar aquele caminho da sinodalidade que é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”.
Percebe-se nestas palavras, quanto o papa acredita na participação do padre para que a mensagem de Jesus chegue a todos os recantos. Tudo a partir de um trabalho realizado em sintonia com o bispo, com os diáconos e com os leigos envolvidos no processo de evangelização.
Em outra parte da mensagem, Francisco apela para os padres e para nós: “De todo o coração, vos sugiro que aprendais e pratiqueis a arte do discernimento comunitário, valendo-vos para isso do método da ‘conversação no Espírito’, que muito nos ajudou no percurso sinodal”.
Ele reconhece que os padres são a base de tudo na Igreja, desde a partilha e a fraternidade entre todos e com os bispos. Percebe-se que buscar atingir nosso entendimento para suscitar comunhão e participação nas comunidades.
Ao final do mês de abril, antecedendo o encontro de Roma, precisamente entre os dias 24 a 30, aconteceu o 19º Encontro Nacional de Presbíteros (ENP), no Centro de Eventos Padre Vítor Coelho de Almeida, em Aparecida (SP). O tema foi “Presbíteros: Testemunhas da Esperança!” e o lema “Alegres na esperança, perseverantes na tribulação, constantes na oração”, numa organização da Comissão Nacional de Presbíteros (CNP).
Nesta primeira semana de maio, em Roma, cerca de 400 padres de todo o mundo, convocados pela Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, participam de evento preparatório para o Sínodo sobre a “Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, que acontecerá no próximo mês de outubro. O Papa Francisco quer ouvir os párocos, na preparação da 2ª. parte da assembleia deste Sínodo.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
ONDE ESTÃO OS DIÁCONOS?
O diácono pode ser o agente a abrir as portas da Igreja para o diálogo com a sociedade, para ajudar a descobrir novos olhares para o mundo. Como também, pode estimular uma proposta de diálogo sobre a vida, sobre a arte e a sobre cultura nas suas diferentes manifestações, a entender as distantes geografias humanas, junto aos crentes e não-crentes.
Foi pensando nisso que lembrei de um dos pronunciamentos do Papa Francisco na Praça São Pedro, em 2018, e destacamos as suas palavras por ocasião do Jubileu dos Diáconos, que teve boa repercussão. Foram palavras de estímulo aos diáconos, os quais exortou a estarem disponíveis para defender a vida, para serem mansos de coração e para permanecerem no diálogo com Jesus e com os que estão ao seu redor.
Para estes ministros ordenados, o Papa disse: “não tenhais medo de ser servos de Cristo, de encontrar e acariciar a carne do Senhor nos pobres de hoje”.
Recordo o que Francisco escreveu em seu livro de memória, recém-lançado – Vida, A minha história através da Historia -, sobre as famílias que viviam em “villas miserias” em Buenos Aires, ao tempo em que era Arcebispo na capital da Argentina: “Sempre considerei fundamental que o pastor esteja em meio a todas as suas ovelhas” (…) “sempre caminhando em meio àquela gente que buscava Jesus: piedade popular é o sistema imunológico da Igreja!”
Para ele, os dois termos “apóstolo e servo” andam juntos. “Quem anuncia Jesus é chamado a servir, e quem serve anuncia Jesus” (Lc, 4,18).
O único modo de seguir Jesus é servindo ao próximo, principalmente o pobre. Permanecendo atento às surpresas de Deus e nunca desistindo da caminhada, mesmo encontrando pedregulhos pelo caminho, permanecerá firme.
Um assunto que chama a atenção do Papa: em certos lugares o atendimento nas paróquias é feito com hora marcada. O Papa manifestou preocupação quanto a essa situação.
Tem um episódio ocorrido com Dom José Maria Pires que ilustra essa situação. Quando assumiu a Arquidiocese da Paraíba, estando ainda residindo no prédio onde hoje funciona a Cúria, à noite, foi acordado por uma pessoa moradora de rua que desejava falar com o bispo. O visitante foi contido pelo Monsenhor Fernando Abath, sobre argumento de que o bispo estaria recolhido aos seus aposentos. “E padre tem hora para atender a gente”, indagou o visitante indesejado.
O padre ficou calado. De lá para cá, muita coisa mudou.
Me angustia quando vejo uma pessoa pedindo para contar suas dores e pedir palavra de conforto, se possível receber a absolvição de algo que o incomoda, e não é atendida, porque “o padre está ocupado!”, responde a secretária muito atenta ao repouso do pastor. Jesus se ocupava com o quê? Se ocupava em atender aos pobres!
Mas voltemos às palavras do Papa. Na mesma homilia, o Bispo de Roma ressaltou que a mansidão e a humildade de coração são virtudes dos diáconos, ministros da caridade. (Vatican News, 07/01/2018).
Se o diácono seguir o roteiro dos Evangelhos chegará aos pobres, em todas dimensões.
À época de Jesus registrava-se murmurações por falta de atenção às viúvas. Para superar esse clima, os diáconos buscaram soluções. “Quando um diácono gosta muito de ir ao altar, ele está errado. Essa harmonia entre à Palavra e o serviço à caridade, é um fermento que faz crescer o corpo eclesial”, disse o papa naquela ocasião.
Estevão e Felipe são modelos de diáconos. Com audácia e força, evangelizaram com seus gestos. Diante da barbárie, Estevão manteve a firme atitude de testemunhar o Evangelho.
Em número crescente, nos tempos atuais, temos homens que sacrificam o convívio com a família, sem côngrua para custeio de suas despesas missionárias, continuam levando a Palavra de Deus a todos os recantos.
Como diácono posso servir muito mais nos lugares onde frequento e no trabalho, no bairro onde resido, no uso de minha arte, com minha poesia.
Acredito que o diácono pode contribuir para que a Igreja possa melhor compreender as novas dinâmicas sociais, as relações humanas conflitantes, a pluralidade social que marcam a vida nas cidades e no campo.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
SAMARITANOS COLETIVOS
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ao final da 61ª Assembleia Geral ocorrida em Aparecida entre os dias 10 a 19 de abril, divulgou mensagem ao povo brasileiro apontando questões que exigem tomadas de posições e requer reflexões sensatas.
É uma nota da grande importância porque tem o crivo dos bispos brasileiros representados por uma Instituição que sempre teve voz ativa nos momentos mais gritantes na vida do povo brasileiro. Desde os primeiros momentos, a voz de Dom Helder Câmara era trovão em favor da vida. Assim como foram outras vozes em momentos diferentes, durante a ditadura militar e depois, como bons pastores, atentos para a agonia do povo. Em muitas ocasiões, fizeram ecoar o grito em favor dos oprimidos.
Em determinados momentos na vida do Brasil, a partir de sua instituição, a CNBB foi ouvida em temas de relevância para a reconstrução da democracia. Mesmo incompreendida em certas ocasiões, não arredou pé de servir e estar ao lado do povo.
Mais do que nunca, agora, suponho, é imprescindível que a Igreja faça ecoar o grito de libertação, sem repetir gestos passados, mas tirando lições para ajudar a construir vida sem panela vazia. Mesmo sabendo que em qualquer imponderabilidade se vive e em qualquer cana se dorme, muitos depositam esperanças na Palavra de Deus que a Igreja faz ressoar. Sejamos profetas imitadores do Bom-Pastor, sem discurso enigmático.
O documento da CNBB merece ser estudado e refletido com profundidade porque aborda importantes temas, principalmente apontando caminhos.
Vamos destacar alguns pontos do documento, citando quando invoca a unidade dos três poderes da República para “viver o que preconiza a Constituição”. Independência e harmonia são fundamentais para os avanços que a sociedade almeja.
Acreditamos que a Igreja deve buscar com toda inteligência, a consolidação da “sociedade do diálogo”, a busca incessante da paz. Essa paz que Jesus nos oferece: “Eu vos dou a minha paz”.
Acreditamos que é nesse sentido que a CNBB deseja a paz mundial, a paz em nosso País. Sabemos que economias sobrevivem com as guerras, mesmo sem poupar inocentes. Levantando sua voz em favor das causas do Brasil, o documento dos bispos expõe a preocupação da Igreja: “Acompanhamos com dor o crescimento do crime, das milícias, do narcotráfico, da violência nas cidades e no campo, do bullying, do vandalismo, do racismo, do feminicídio, do tráfego humano e da exploração sexual de crianças e adolescentes e vulneráveis”.
A realidade dos migrantes, do povo em situação de rua e da população encarcerada, tudo, mas tudo mesmo, são desafios apontados pelos epíscopos brasileiros. Estes nos reclamam tomadas de atitudes. Lembrando o profeta Isaias (32,17), afirmam os bispos: “Necessitamos construir a paz que nas da justiça”.
Em mensagem direta às autoridades constituídas, os bispos apontam que o Brasil necessita priorizar o trabalho, o bem-estar humano, junto com a geração de emprego e renda, sempre com o olhar para os jovens.
Somos chamados a refletir cada palavra dos bispos, usar as ferramentas que dispomos para agir solidariamente em favor dos necessitados, de modo que tenhamos “um país humanizado, politicamente humanizado, politicamente democrático, socialmente justos e ecologicamente sustentável”.
A questão climática, tão em voga desde a ECO-Rio, em 1992, continua a reclamar maior atenção. A Igreja, novamente, volta sua voz para essa questão, uma sangria que pequenos curativos não resolvem. Também volta sua voz para a questão dos povos das florestas e ribeirinhos.
Como uma revelação de compromisso, vejamos este trecho da Nota da CNBB: “Essa Conferência poderá ser uma oportunidade de mostrar o compromisso dos governos com a obra da Criação e a responsabilidade das mulheres e dos homens como cuidadores de tudo o que Deus criou e lhes confiou”.
Aplausos! Não devemos somente mostrar as feridas, mas cobrar soluções. Ser a voz dos que têm a voz abafada.
A consciência cívica deve estar a serviço dos mais profundos interesses do povo, é outro ponto destacado na mensagem. Uma recomendação: nunca abdicar da participação política.
Os extremismos e a intolerância causam um grande mal. Como também “a liberdade de expressão não pode estar a serviço da divisão social”.
Acredito no poder da Palavra. As palavras dos nossos bispos sejam um eco em favor das causas do pobre, o povo que Jesus tanto amava e defendia, como um bom-pastor.
Os bispos que assinaram esta Carta me fazem lembrar do termo usado pelo Papa Francisco, no seu último – Vida A minha história através da História -, quando fala de pessoas que participam de manifestações pela não violência, intervindo em favor da dignidade de seres humanos, aos quais chamou de “samaritanos coletivos”.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
A AROEIRA DA IGREJA
A Carta em que Pero Vaz de Caminha registrou as paisagens da nova terra que passou a ser habitada pelos portugueses, contém o registro de que “em si plantando, tudo dá”. O repórter do Reino de Portugal se mostrou admirado com a imponência da mata atlântica encontrada, com a fertilidade do chão, com árvores de muito valor comercial, com o majestoso panorama observado do cume de algum rochedo.
Se estivesse aportado em nossa Paraíba, ele teria visto que na terra dos potiguaras e tabajaras brotavam regos de água clara, rios que possuíam croas de areia onde nasciam matinhos, capim, aroeira da praia, e nas águas cristalinas cresciam peixinhos, caranguejos nos mangues sadios, e siris provavam as beiras molhas onde indígenas a beiradear pelo Rio Sanhauá, recolhiam o que comer.
Em dias do mês passado, lentos em nosso caminhar pelos estreitos espaços das ruas Duque de Caxias e Peregrino de Carvalho, Gonzaga Rodrigues e eu, ficamos abismados e tristonhos com a situação do prédio religioso que é um dos símbolos da época colonial e do outro, de construção de início do século XX, mas que hoje representa a burguesia decadente da Capital paraibana.
A sede social do antigo Clube Cabo Branco, onde os barões do café, do agave e da cana, junto com os apaniguados do governo, posavam suas opulências financeiras que as heranças permitiam exibir, revelava o atual descaso para com este prédio repleto de histórias.
Olhávamos para o espaço que espelhou uma longa fase do poderio econômico e social, agora perdido no tempo e esquecido na memória da cidade, e uns passos mais adiante, a Igreja da Misericórdia, imponente e histórica nos chamou a atenção. Gonzaga recordou o tempo da Igreja da Misericórdia quando nossa Colônia ainda dava os primeiros passos, já nascendo imponente.
Observou que no frontispício do templo religioso nasceu uma aroeira da praia. Antes que apontasse descaso por parte da administração da Igreja em relação àquele prédio, revelei quanto a nossa terra é fértil e que, mesmo entre os tijolos, a caliça faz brotar plantas.
Passados alguns dias, retornei ao lugar, observei que a administração do templo de orações havia retirado a aroeira que trincava a centenária parede da Igreja. O monsenhor Ednaldo Araújo, o novo administrador, zeloso com as coisas históricas da Igreja, confirmou que, quando assumiu a Igreja da Misericórdia, de imediato buscou cuidar de pequenos detalhes, entre os quais, retirar a aroeira da praia que se revelava danosa à paisagem do monumento religioso.
Quanto é importante, ao gestor público, o cuidado dos monumentos que respiram nossa história, seja a história de lutas políticas e sociais, seja a história da espiritualidade cristã, presente entre nós com vitalidade desde quando os portugueses se apoderaram de nossas terras.
Enviando a Gonzaga foto em que mostra a Igreja sem a presença da aroeira, este cronista-poeta se revelou agradecido.
Faço o registro como agradecimento pela sensibilidade de quem cuida, com incontido apreço e cuidado, de um dos nossos mais belos monumentos religiosos, marco de uma época de nossa história. Como também para registrar a preocupação daquele que tem sido o cronista que mais observa os recantos desta cidade.
A história da Paraíba é revelada na densidade dos seus monumentos religiosos, sendo os maiores o São Francisco, o Mosteiro de São Bento, o Convento dos Jesuítas e as Igrejas do Carmo e da Misericórdia, para nós os primeiros Caminhos da Fé da Paraíba, desde quando os portugueses colocaram os pés na região.
A Paraíba tem terra fértil, mesmo que quinhentos anos depois esteja maltratada. O solo deve ser bem cuidado para oferecer os frutos que ajudam na nossa sobrevivência e nos proporcionam ganhos com a renda do que fazem brotar.
Sempre presenciamos que entre tijolos e pedras das ruas nascem plantas, brotam flores e arbustos que, se vistos hoje por Caminha, este certamente escreveria ainda mais empolgado em relação aos cinco imponentes prédios do período Colonial, mas certamente exporia a vegetação como sendo degradada.
Será que o repórter português apresentaria o mundo de hoje com injustiças, exploração e destruição do meio ambiente como sinais visíveis de um mundo perdido em atitudes anti-humanas?
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
LAVAR AS MÃOS
Em continuidade às colocações do professor Milton Marques Júnior sobre o sentido da Páscoa, publicadas neste espaço na semana passada, senti de bom alvitre trazer este texto que se seguiu tão logo suas opiniões chegaram ao público.
Na resposta ao leitor que comentou o “lavar as mãos” pronunciado por Pilatos, na cena da condenação de Jesus, Milton Marques nos deu uma bonita e importante explicação. Explicação de quem estuda e medita os fatos narrados nos Evangelhos.
Achei por demais pertinente a sua publicação, feita com sua autorização.
Eis o texto:
“Permita-me dizer, meu caro Damião, que o “lavar as mãos” de Pilatos não consiste em ato de covardia ou desistir de alguma coisa. É preciso ver a ação dentro do contexto cultural dos romanos da época. Lavar as mãos, em água corrente, sobretudo, é um ato de purificação. Pilatos purifica-se diante dos seus deuses, com a água lustral, própria é expiação dos miasmas, o lues, com relação ao que ele acha uma impiedade, novamente no sentido latino do termo, não no sentido que atribuímos hoje. O ato de lavar as mãos significa que a mancha, o miasma deveria recair sobre aqueles que escolheram a condenação de um inocente, não sobre ele, romano, que temia as ações que pudessem despertar a ira dos seus deuses.
Por outro lado, há sempre uma incoerência, quando atribuímos a Judas, a Caifás, a Pilatos, à multidão, a condenação de Jesus e a sua crucificação. Não há culpados, há instrumentos, tendo em vista que Jesus é que escolheu a sua missão. Ele, que já existia como espírito perfeito, antes mesmo da criação do mundo, escolheu com o Pai dar o exemplo mais dolorido, para que entendêssemos que só progredimos com o que parece ser um sofrimento sem consequências. E quando agimos com determinação e consciência, como Jesus agiu, o sofrimento é a expressão do Amor maior, como foi o dele”.
O Professor Milton Marques Júnior, Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas da UFPB, tradutor e um dos maiores especialistas brasileiros na Língua Latina e da Língua Grega. Integra a Academia Paraibana de Letras. Escreveu Dicionários da Eneida, de Virgílio e publicou diversos livros.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
PASCOA É TRASFORMAÇÃO
A vez do Mestre
Hoje, de modo especial, cedo meu espaço nesta página para o Professor Doutor em Letras Clássicas Milton Marques Júnior, tradutor e um dos maiores especialistas brasileiros na Língua Latina e da Língua Grega. Ele integra a Academia Paraibana de Letras.
Páscoa é transformação
Milton Marques Junior
Páscoa é passagem. Nada sei de hebraico, mas o dicionário judaico me ensina que o termo pessach se refere à comemoração dos judeus pela libertação do Egito e o seu êxodo, a passagem pelo deserto, de que deverá resultar uma transformação. Páscoa é, portanto, não só passagem, mas sobretudo transformação.
A paixão de Jesus Cristo se dá no momento da Páscoa judaica, originando, assim, a Páscoa cristã, uma passagem com o intuito de nos proporcionar a oportunidade de transformação pelo Amor, a essência da sua pregação.
Agora que estamos no período pascal, lembremos que a Páscoa cristã, cuja celebração se instaura aqui, no hemisfério norte, a partir do Concílio de Nicéia (325), é festa que sempre acontece acompanhada de mudanças físicas: o equinócio da primavera, que ocorreu no último dia 20 de março, e da Lua cheia, no último dia 25. Neste dia 31 de março, o Domingo de Páscoa, acontecerá mais uma mudança, com o estabelecimento do horário de verão. Os relógios serão adiantados em uma hora, tendo em vista, por razões astronômicas, uma predominância da luz solar, em relação às sombras noturnas.
Tudo leva à transformação, de que a primavera, o principal motor, não é a outra coisa senão a transformação da Natureza morta em nova Natureza viva. Passagem, mudança, transformação, morte que se torna vida, eis o que significa Páscoa, com os seus sentidos translatos, para além da etimologia de que não discordo, tendo em vista que ela nos dá a natureza verdadeira da palavra.
Às transformações físicas devem vir acompanhadas da transformação espiritual, que não pode ocorrer sem uma preparação para a aceitação das suas consequências. Nada se transforma ou se muda sem que ocorram obstáculos nos forçando à mudança. Cristo é a prova disso. Há quem só tenha entendido o sofrimento da morte dolorosa de Cristo e perpetue esta ideia, sem ter aprendido o seu significado. Mudança e Sofrimento são irmãos xifópagos, não há como separá-los. Torna-se, portanto, necessário a cada um, se quiser mudar, carregar o seu sofrimento e cuidar para aprender com ele. Nesse processo de preparação para a passagem, mais do que a casca, precisamos nos livrar do que temos entranhado, impedindo que nos vejamos e aos nossos semelhantes.
A preparação requer a comunhão e a humildade, simbolizados na Santa Ceia e no lava-pés. Esclareça-se que não precisamos, realmente, de lavar os pés de ninguém, mas precisamos ter a humildade no trato com os nossos semelhantes, vendo-os como iguais aos quais podemos servir, quando a oportunidade se nos apresentar. Além da comunhão, fenômeno que ratifica a minha identificação com o outro e no outro, e da humildade, a preparação exige coragem para o enfrentamento que a mudança reclama. Cristo morre e ressuscita, para mostrar que a morte é apenas uma passagem, ele que veio da espiritualidade para a vida física e retornou à espiritualidade.
Não precisamos morrer a morte física, para dar início à nossa Páscoa particular. A reflexão pode ser um instrumento eficaz para que comecemos a matar a nossa velha maneira de ser, ressuscitando ainda em vida, na irmanação que o Amor pode proporcionar, mas isto não se fará sem sofrimento. A consciência de que todo o itinerário de Cristo na Terra, além da sua inquestionável verdade divina, pode ser visto como uma simbologia, deverá nos guiar a uma aprendizagem inicial e a novos retornos, para mais aprendizagem, até que não necessitemos mais morrer fisicamente, porque, então, seremos espíritos, vivendo na Luz e no Amor Crístico. Reflitamos e busquemos a transformação. É o sofrimento do renascer que nos trará a paz de espírito, e não haverá paz externa, enquanto não a encontrarmos dentro de nós.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
DOM MARCELO ENTRE ORAÇÃO E AÇÃO
Depois de cinco anos sepultado no mausoléu dos arcebispos na Catedral-Basílica Nossa Senhora das Neves, em João Pessoa, os restos mortais de Dom Marcelo Pinto Carvalheira, 5ª arcebispo da Paraíba (1995-2004), são transladados para a Catedral de Nossa Senhora da Luz, em Guarabira, onde foi o primeiro bispo (1981-1985). Anteriormente, ele havia sido bispo-auxiliar da Arquidiocese da Paraíba (1975-1981), atuando na região polarizada por aquela cidade do Brejo paraibano.
Seu lema era sintetizado na palavra “Evangelizar”, escolhido quando foi ordenado padre, no dia 28 de fevereiro de 1953, em Roma, que passou a ser o ponto central de toda a sua vida de pastor. Sagrado bispo, em 27/12/1975, repetiu com fervor a mesma intenção de continuar a evangelizar como o Bom Pastor ensinou. Novamente, tempos depois, reproduziu esta palavra quando assumiu a Arquidiocese da Paraíba.
No período em que foi ordenado padre e depois sagrado bispo, Dom Marcelo fez surgir os frutos da Palavra de Deus onde foi chamado a atuar. Entre a oração e a ação, mostrou como a pessoa é capaz de anunciar e viver as bem-aventuranças em sua plenitude.
Natural da cidade do Recife (PE), onde nasceu no dia 1º de maio de 1928, filho de Maria Tereza Mendonça e Álvaro Pinto Carvalheira, cedo demonstrou interesse pelo sacerdócio. Foi estudar na Universidade Gregoriana, em Roma, onde, em 1953 é ordenado padre. Voltou para sua terra, onde exerceu as funções de presbítero. Com a chegada de Dom Helder Câmara à Arquidiocese de Recife e Olinda (1964), atuou com mais afinco nas questões pastorais, sobretudo as sociais, e junto à juventude, ao tempo em que coordenava o seminário de formação de novos presbíteros.
O governo militar (1964-1985), sem conseguir emudecer Dom Helder Câmara, perseguiu seus auxiliares mais próximos. Trabalhando diretamente com o arcebispo de Recife e Olinda, foi preso quando participava de um seminário de estudos em São Leopoldo (RS), juntamente com outros padres, entre os quais, o dominicano Frei Beto, acusado de estar no Rio Grande do Sul planejando ações de mobilização popular para derrubar o governo. Passou 51 dias preso, mas nada encontraram contra ele.
Na prisão, mesmo diante da tensão e dos intermináveis interrogatórios, não perdeu a serenidade. Animava os outros presos e, em certas ocasiões, celebrava missa entre eles com os objetos que tinham, de modo que a Palavra de Deus os motivasse a persistir em suas convicções.
No ano de 1975, ordenado bispo-auxiliar de Dom José Maria Pires, foi atuar na área pastoral de Guarabira, com a finalidade de que, em breve, seria transformada em diocese, o que realmente aconteceu em 1980, sendo nomeado seu primeiro bispo, cuja posse se deu no ano seguinte, onde permaneceu até sua ascensão a arcebispo metropolitano da Paraíba, com a renúncia de Dom José Maria Pires.
Nas terras do Brejo
Ao chegar à Paraíba, como bispo-auxiliar de Dom José Maria Pires, deparou-se com um quadro aterrador, principalmente no campo, onde as fontes de trabalho se reduziam devido a um programa governamental de estímulo à pecuária. A mão de obra nos engenhos, que vivia sistema de semiescravidão, tornou-se ainda mais escassa, levando famílias às pontas das ruas. O modo usado pelos donos das terras para se livrar desses trabalhadores era espúrio e deprimente. Nada o intimidou. Sentia a manifestação de fé nas pessoas. Tratou bem os governantes e ricaços, mas sem sujeição. A mão que os cumprimentava era a mesma que erguia na defesa dos oprimidos.
Costumava dizer que, ao chegar à Paraíba, encontrou o “povo crucificado” e era forte a presença da “civilização da pobreza”.
Bispo que ouvia com benevolência e carinho os irmãos que dele se aproximavam. Era como se Jesus falasse com ele na pessoa do irmão sofrido.
Padre forjado nos gestos de Dom Helder Câmara, encantado pela beleza do Evangelho e afinado com as pessoas no convívio da comunidade de fé, Dom Marcelo decidiu recriar entre os homens uma nova Arca da Aliança, porque não se recusou a enfrentar a opressão, mesmo com o sacrifício da liberdade e da vida.
Sua chegada e permanência em Guarabira foi passo decisivo para fomentar a conscientização política e social da população da região, pois reanimou a todos com sua palavra. Apoiou grupos de trabalho que encontrou e os que surgiram, tais como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Centro de Orientação dos Direitos Humanos (CODM), Serviço de Educação Popular (SEDUP), Programa Comunitário de Educação Popular (PROCEP), Associação das Viúvas, inclusive aquelas cujos maridos foram assassinados durante a repressão policial, Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), Movimento de Adolescentes e Crianças (MAC), Fraternidade Cristã dos Docentes e Deficientes (FCD), movimentos como Encontro de Casais com Cristo, Renovação Carismática, Focolare e vários outros grupos pastorais que ajudaram a organizar o povo. Tudo era novidade na região onde atuava.
Durante sua trajetória de bispo, não esmoreceu diante das agonias, fazia de sua ação evangelizadora um testemunho. Em tudo colocou o tempero do amor. Em tudo amava e servia em abundância e no limite de suas forças.
Por quase trinta anos como bispo nas terras da Paraíba, abriu largos horizontes para acolher quem se aproximasse dele, buscou consolo, ergueu os caídos, incentivou a fé com a Palavra de Jesus onde tudo desmoronava, acalmou o ódio entre famílias.
Sua palavra acalmava, contaminava todos, mesmo os mais exaltados. Ficaram famosas as tapinhas carinhosas como cumprimentava quando alguém estava agitado perto dele, ou tocando levemente o rosto das pessoas.
Dom Marcelo foi, a exemplo de outros bispos de sua época, um pastor que tinha sempre a mão estendida aos necessitados, trazendo presentes as bem-aventuranças de Jesus.
No período quando o governo se ausentou da defesa de pessoas que eram dizimadas por milícia armada, ele combateu os infortúnios do povo mergulhado no desespero. Contra a tirania, lutou em proporções estupendas, dando lições de altivez em favor da vida. Sua voz era trovão a estrondar pelos arrabaldes das serras da região onde atuava. Comovia-se vendo a população que mendigava, a esta nunca faltou o abraço terno.
Seu olhar harmonizava os ambientes turvos, quando a lei dos homens imputava opressão, arrastando cordilheiras abaixo seres desprovidos de acesso aos seus direitos. Na Paraíba, em muitos lugares, ainda flamulam seus gestos meticulosos que agitaram mentes e corações na busca de um mundo de paz.
Seu abraço tinha largueza porque continha ternura, amor abnegado e uma forte fé cristã. Nele a fé se agigantava, o plano divino se completava. Quando se recolhia para a oração vespertina, no silêncio da cela ou no oratório da natureza, fazia seu contato supremo com a vida. Em Guarabira construiu um eremitério afastado da cidade; quando esteve na capital, em sua casa fez construir espaço onde pudesse observar a imensidão verde do Rio Sanhauá.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
AS CHUVAS DE MARÇO
Durante os dias que antecederam a passagem do ano novo, ocorreram chuvas em muitas partes da Paraíba e, suponho, trouxeram alento e esperança para muita gente.
Lugares onde a chuva tem o costume de passar longe, como Cabeceiras e Arara, também tiveram um bom índice pluviométrico, levando em conta os padrões aos quais estamos acostumados.
Observando as chuvas ocorridas em janeiro, veranicos salvadores, recordei uma bonita passagem do romance “Fogo Morto”, de José Lins do Rego, descrita com suavidade poética, das muitas que nos deixou, contendo a alma do povo em quadro de ternura.
“ – Vai ter chuva, comadre, o céu parece um leirão.
– São os carneiros de Deus, comadre, no céu.”
Neste diálogo encontramos elementos sociológicos, de alto nível psicológico e de valor estético da linguagem que representam o sentimento do homem do campo, que está agarrado à terra. Um tantinho de chuva fecunda a nossa alegria. Basta uma florzinha na beira da estrada para que nosso mundo se transforme em coisa boa.
Os sinais de chuvas observados no final de ano apontaram esperanças no homem do campo. Fizeram-me lembrar de meu tempo de caboclo do mato quando acompanhava meu pai com suas experiências climáticas.
Como o panorama ambiental mudou bastante nestas cinco décadas, desde quando no sítio fazíamos os experimentos de previsão de chuva, dificilmente os prognósticos saiam como previstos. Sabe-se que o desmatamento é responsável pela redução das chuvas, que no semiárido se agravou ainda mais.
Com o corte de tantas árvores, as tardes ficaram compridas, tristes, parece até que o vento do Litoral passa desembestado pelo Brejo, corta as cordilheiras da Serra da Borborema, em busca do Cariri até chegar ao Sertão.
O questionamento é sobre o que vem sendo feito para recuperar as áreas degradas no Nordeste, com regiões inteiras destruídas ao golpe da foice. O desmatamento foi patrocinado pelo poder público nos anos 1960, principalmente quando incentivou a pecuária e a expansão da cana de açúcar em áreas apropriadas para outras culturas e atividades.
Olhando a vastidão do Sertão e do Brejo até chegar ao Litoral, sem os pés de paus como outrora, sentimos desgosto. Sem as árvores, as chuvas se encantam. O homem tem que estar misturado com a natureza para entendê-la. Nunca assassinar a paisagem, mas amá-la e fazê-la procriar. Somente assim ele poderá sobreviver.
Os sinais de chuva que presenciamos nos dias posteriores ao Natal, que também aconteceram agora em março, são prognósticos de mais chuva.
Confiamos nas chuvas do Dia de São José para a confirmação de ano bom de inverno. Nunca falham.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
O CONVENTO E SEUS MISTÉRIOS.
Há mais de trinta anos Firmo Justino, jornalista que entrou para a Magistratura da Paraíba, retornando às paisagens do Convento São Francisco, numa crônica antológica, disse que foi satisfatório passear pelo maravilhoso conjunto arquitetônico barroco, e convidou a todos para visitar aquele lugar. Mesmo que fosse uma única vez, narrava, quem olhasse para as velhas paredes carregadas de histórias, as imponentes capelas ornamentadas com belas pinturas e imagens, como também observasse as peças sacras de incomum beleza, além do horto que exala o perfume silvestre, dali sairia com o desejo de retornar.
Na época da visita do meu amigo, o convento tinha sido restaurado, estava ainda mais imponente e carregava, como ainda mantém, o encantamento do magnífico conjunto arquitetônico barroco. Quem passear por seus longos corredores de largas paredes, pisar no assoalho de madeira dura e olhar as peças ornamentais que a mão humana moldou, silencia e escuta a quietude do lugar.
Se eu fosse rei ou imperador, assim como nas estórias que ouvia no tempo de criança no nosso sítio, em Serraria, recomendaria aos professores a levar seus alunos a este maravilhoso local, onde estão guardadas muitas histórias que ajudam a entender o passado da Paraíba, porque falam como um livro aberto.
Para amar o lugar onde nascemos, é por demais importante conhecer sua história, sabiamente profetizava Nathanael Alves.
Estive pela primeira vez no São Francisco, em 1979. Foi quando, por inspiração de Dom José Maria Pires, o poeta Waldemar José Solha e o maestro José Kaplan montaram a “Cantata pra Alagamar”, apresentada numa noite que me deixou abismado pela aclamação ao espetáculo e pela imponência do conjunto arquitetônico onde o evento aconteceu.
Então, após as revelações de Firmo Justino, levei minha filha Angélica para conhecer aquela inconfundível obra de arte. Grande foi sua admiração, apesar dos nove anos de idade. Pouco indagava, mas o semblante e os olhos arregalados davam pistas de seu encantamento ao contemplar detalhes dos corredores, as grossas paredes e as imagens pintadas no teto das capelas.
Todas as vezes que volto àquele lugar, vagueio na imaginação colhendo remotas imagens e histórias que os livros abordam, desde a fixação das pedras sobre pedras, conduzidas por muque humano até chegar a imponente edificação que conhecemos. Entre as paredes, o silêncio de Deus se manifesta em nós.
Em cada recanto observava-se misterioso silêncio. O vento entrando pelos janelões, espalhando-se pelos móveis antigos, caminha ao nosso lado durante o passeio pelas celas, extensos corredores e o horto florestal recebe a todos com seu frescor.
Meu amigo tinha razão quando nos convidou a visitar o convento franciscano, e olhar por dentro a fabulosa obra de arte que eles deixaram.
O prédio com a torre apontando para o céu, o cruzeiro que nos recebe à entrada e seus arredores, tudo espalham emoções. Essas imagens carregamos pelo resto da vida.
– Não é uma beleza?…
A menina respondeu com aceno da cabeça, e curtas palavras que tento relembrar.
Quase três décadas depois, a filha conduziu meu neto Bernardo para igual visita, vivendo semelhante deslumbramento.
O convento franciscano continua com seus mistérios, criando emoções aos que ali se dirigem, mesmo em tenra idade ou que tantas vezes tenha estado no lugar.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
NO CAMINHO DE JERICÓ.
No caminho para o Sertão, já nas proximidades do limite da Paraíba com o Rio Grande do Norte, nos deparamos com um bonito lugar, fascinante e acolhedor.
Na cidade de Jericó, homônima da antiga Jericó bíblica, me deu vontade de ficar ali por mais tempo, esperar manhãs para colher o sol ao surgir por detrás de colinas, e no entardecer, recolher paisagens como mensagens espirituais.
Observando a paisagem de Jericó, recordei Serraria, inspiração maior, onde nasci e cultivei sonhos. Firmei compromisso de retornar ao lugar para olhar a arte da Natureza espalhada pela região.
Gosto de andar pela Paraíba. Conheço diferentes lugares, escuto pessoas, converso sobre a vida que levam. Isso me ajuda na montagem de alfarrábios e alimentam sonhos de escritor. Jericó é a cidade paraibana que poucas vezes visitei.
A profissão de repórter me proporcionou apreciar lugares, inesquecíveis. Citaria muitos desses recantos extremamente encantadores, mas fico com esta cidade encravada nas proximidades de Catolé do Rocha. Em outro extremo da Paraíba, lugar mítico é Serraria, no Brejo, que erradia emoção quando andamos por suas ladeiras e observamos córregos de água cristalina nas vazantes, onde o vento açoita os cabelos das mulheres como se fosse as folhas palmeiras espalhadas pelos canaviais.
Mas voltemos a falar de Jericó. Lugar exótico, de vegetação não diferente das existentes em léguas ao redor. Há algo naquela região me agarrou. Busquei identificar, sem sucesso. Pensei ter sido a suavidade da brisa no final da tarde.
Naquele dia, ao entardecer, observei pelas encostas pequeno rebanho de gado obediente ao aboio do menino. As vacas, os bezerros e as novilhas seguiam o touro rufião, no rumo da voz de comando do pequeno vaqueiro.
Mais do que impressionar, Jericó trouxe lembranças do sítio onde vivi minha infância, quando ficava em cima do mourão da porteira ou no pastoreio do gado, chapéu de couro de meu tio vaqueiro na cabeça, com a barbicha dependurada até o peito. Ou quando montava em cavalo-de-pau, esquipava pelo terreiro e capoeiras, repetia o aboio que somente eu escutava e fazia o pastoreio do rebanho imaginário.
Ao juntar imagens de Jericó, a que mais se fixou na minha mente foi a Capela da Imaculada Conceição, construída no alto de uma serra, nos arredores da cidade. Bela e imponente, presente de empresária, filha da terra.
A pequena cidade de Jericó teve origem na inspiração do temido Oliveira Ledo, que caiu nas graças dos comandantes da Colônia e, com o aval destes, avançou pelo interior da Paraíba, ocupou terras férteis no regaço dos rios, mesmo que com isso exterminasse grupos de indígenas, escorraçasse habitantes dos lugares por onde passava. O que queria era expandir negócios e criar rebanhos de gado, mesmo com o extermínio de gentes nativa. Escorraçados, indígenas e caboclos se sujeitaram ao cutelo do novo dono das terras. Coube a Capitão José Fernandes da Silva, integrante deste grupo, após receber concessão do Rei de Portugal, nos primeiros anos do século 18, desbravar as terras atualmente pertencentes ao município de Jericó.
Estes desbravadores chegaram ao lugar depois de ocupar a região de Pombal e descobrir muita riqueza naquelas bandas. Subiram o riacho do Quixó Penoso, que desaguar no Rio Piranhas e desemboca no Rio Grande do Norte, se apoderaram das terras com o intuito de explorar suas riquezas.
Em 1922, o bando de Lampião esteve no lugar, arrastou tudo encontrado na vila de Jericó. Da troca de tiros em fazendas da redondeza, muito se fala e alguns recordam por ouvi dizer, existe quem tem cartuchos e espoletas recolhidos pelos mais velhos, guardados como relíquias.
O entardecer, o menino vaqueiro, as histórias do cangaço e a Igreja da Imaculada Conceição, destacando-se no cocuruto da serra e percebida à distância, são imagens que guardo de Jericó.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
A DOR TRAZ GESTO POÉTICO
Em poema antológico, o monge beneditino Marcos Barbosa, da Academia Brasileira de Letras, fala do amor do homem e da mulher quando formam um casal, reproduzem a espécie humana como dom supremo de Deus e enfrenta com serenidade todas as barreiras que se lhe impõe.
Neste mês, em Araruna, um casal completou 75 anos de matrimônio. A data foi celebrada com simplicidade, mesmo grande a alegria de seus familiares.
Já tive oportunidade de testemunhar gesto de amor semelhante, quando casais invocaram benções na celebração de 50 e de 65 anos de casamento.
Um desses momento, o casal vivia momento de dor. Há mais de quinze anos ele estava em estado vegetativo, intercalando os dias entre a cama de um hospital e o leito de sua casa.
Na leitura da Carta de Paulo aos Coríntios ouvimos que Deus é fiel para conosco. Dessa fidelidade vem a força para suportarmos as inquietações, as dores que estão fora no nosso controle e com as quais convivemos.
Tudo o que acontece conosco são do plano de Deus. Ele nos fortalece e alimenta para transpor as barreiras que, não tivesse sua mão, dificilmente daríamos passos para frente.
A maior prova de amor, no dizer Jesus, é doar-se pelo outro. Doação que ultrapassa os limites físicos e do entendimento porque alimentada pela força que brota do encontro com Deus, na pessoa do outro. O que acontece para tanta dedicação e aceitação do outro, sobretudo na dor e no sofrimento, está além de nossos entendimentos porque vem das energias cósmicas que nos governam, que é o próprio Deus.
Somente quem faz o encontro com Deus, no seu silêncio, é capaz de amar e nunca esquecer. Tantas pessoas largam tudo para servir, e servindo fazem esse encontro com Deus. “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, disse Jesus para seus seguidores.
Grande é a arte do amor, como nos ensinou o mestre do Amor. Somente no amor é possível viver 50 ou 75 anos de uma união abençoada no Sacramento do matrimônio. Aprende-se a amar cultivando a arte da contemplação do belo, na paciência, na capacidade de perdoar quem estar ao nosso lado.
Não fosse o amor, dificilmente haveria esperança. Amar é estar à disposição para servir, dedicar-se ao escolhido. Amar é transformar a vida numa primavera, não importando a situação porque o amor tudo supera.
A semente do amor semeada faz a vida brotar em cada semente germinada.
O poeta Ferreira Gullar disse que a dor física é paralisante, não inspira poesia. Não concordo com ele. A doação por quem sofre a dor física é poesia. Na Cruz, o gesto de Jesus foi altruísta, profundo, afetivo e poético. Na sua dor, Cristo produziu solidariedade com gesto poético.
Porque mais sensíveis e mais poéticas, em certas ocasiões, as mulheres portam gestos caritativos mais profundos do que os homens, se dedicam aos outros com fervor.
Nos gestos destes casais temos uma demonstração capital do cumprimento da promessa de estarem juntos ao escolhido em todas as circunstâncias, na alegria e na tristeza, mesmo que a dor do sofrimento exija superação. Tudo é bonito sinal de afeto, construído na fé e no amor ao próximo.
O amor faz a pessoa capaz de conviver com seu amado no leito de hospital, recolhido aos cuidados de Deus pelas mãos de médicos, das cuidadoras e acompanhantes. Amar é servir.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
DE MÃOS ESTENDIDAS.
Há uma passagem bíblica que faz referência à riqueza e ao desapego do luxo. “Se queres me seguir, vende tudo e doa aos pobres”. Lembro disso quando a Igreja silencia no momento em que se completam os 50 anos da morte de Padre José Coutinho, nosso maior benfeitor de todos os tempos, à semelhança de Padre José Maria Ibiapina, no século 19.
Em escaldante dia de sol de novembro, o fundador do Instituto São José e do Hospital Padre Zé, em cadeira de rodas, sob o guarda-sol, o suor do rosto umedecendo a toalhinha, a batina preta cobrindo as pernas inchadas enquanto pedia esmolas, como fazia há décadas, passou mal e foi levado às pressas ao hospital, onde faleceria dois dias depois.
Nascido em família católica, com tios padres, influentes na Igreja da Paraíba no final do século 19, a história de Padre Zé Coutinho é pontilhada de incomparável desejo de servir, cuja base foi edificada na infância quando seus pais, donos muitas terras, se constituíram benfeitores na região de Esperança, Pocinhos e Serraria. Seguir o caminho do sacerdócio foi uma decisão tomada na adolescência, logo acolhida por todos.
Ordenado padre em 1920, não perseguiu cargos na Igreja, mas se aproximou de quem poderia ajudar a minimizar a situação de penúria das famílias residentes nas periferias da Capital, onde a pobreza mendigava. Foi quando muitos pobres passaram a olhar uma luz distante no horizonte.
Cedo ele procurou forrar-se de virtudes teologais e ensinamentos filosóficos para compreender as paisagens humanas construídas tendo como base fé cristã. Se não tinha sede de conhecer certos conceitos da religião, era um homem culto que abraçou a causa dos pobres baseado na sabedoria da Palavra de Jesus, por isso edificou fecundo trabalho em favor dos excluídos.
Parece que ouvia a assertiva do Mestre: “Se queres me seguir, vende tudo e doa aos pobres”. Assim procedeu, pois, quando recebeu herança de seu padrinho e de familiares, sendo uma fazenda em Pocinhos e engenho em Serraria. Vendeu-os para repartir com os necessitados, pois investiu tudo no Instituto São José e na modesta casa de acolhida, para amenizar a dor de agonizantes. Igualmente, aconteceu com a fazenda no bairro de Mandacaru, doada pela senhora Iaiá Paiva, permitindo que famílias ocupassem e construíssem suas casas.
Em sua trajetória de vida religiosa, não desviou o olhar da pobreza, não praticou gesto desgastante para a Igreja. No entanto, elevou gestos bondosos para dignificar a vida dos desprezados pelas autoridades governamentais. Ele foi um interlocutor para retirar do encurvamento social, de prostração e da inabilidade muitos que estavam em situação de exclusão.
Quando aportei nesta cidade em 1971, conheci este padre que percorria os salões de festa e postava-se às portas dos cinemas para pedir esmolas, sempre com retumbante “meu prezado, não esqueça de ajudar aos meus pobres”, enquanto tocava ao ombro de alguém com a vareta de sucupira.
Conheço pessoas que à época, jovens, empurraram sua cadeira de rodas. Convivi com pessoas que estiveram sob seu teto, receberam ensinamentos que nunca deveriam esquecer. O jornalista Natahanael Alves, o deputado Antônio Medeiros, o procurador do Estado Manoel Raposo, o desembargador Simeão Cananéa e tantos outros que acho razoável não cita mais para não cometer injustiça, o que seria imperdoável, comeram os pirões do padre.
Quando acometido pelos males do corpo, o padre apresentava cansaço, sem condição de manter a residência, jovens médicos dão as mãos para transformar a antiga Casa do Padre em local habitável, relanceando olhar ao crepúsculo acolhedor de antes. A sociedade assumiu o projeto caritativo de elevado sentido, e depois, passou a ser comandado durante anos por uma comissão integrada por membros do Encontro de Casais com Cristo, da Basílica-Catedral Nossa Senhora das Neves.
Padre José Coutinho nunca falou com jactância de seu espólio caritativo, mas revelava-se no pequeníssimo conforto que trouxe para muitos desvalidos. A todos boamente se dedicava sem em nada pedir em troca.
Sabia ser tarefa árdua manter o empreendimento à custa de doações porque era pouca a subvenção do Estado. Nunca esmoreceu diante do infortuno de não ter o que comer nem remédio para curar feridas dos desvalidos. Mas Deus infundiu nele esperança e perseverança.
O Instituto São José, fundado em 1935, e, com muito esforço, em 1965, a Casa do Padre foi transformada em hospital, legado pelo o qual sempre dedicou sua vida porque entendia como cumulação de Deus, apenas sendo sócio benemérito e fiel depositário, sem querer glória.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
HÁ QUASE CINCO DÉCADAS.
Uma data que não esqueço. No dia 5 de fevereiro de 1975, publiquei minha primeira crônica no jornal O Norte. Um texto curto. Falava de uma viagem à Serraria, onde amanheci depois de quatro anos de ausência. Um texto telúrico, recheado de saudades.
Para publicá-lo, como fazia em outras oportunidades, Nathanael Alves “passou a vista”. Era um exercício maravilhoso para a aprendizagem. Ele realizava a revisão com paciência, apontava os excessos no emprego dos adjetivos.
Devo muito a esse conterrâneo que me ajudou a construir, passo a passo, a base de minhas leituras. Exercitamos juntos a literatura, a arte de escrever e de estar na convivência com escritores, artistas, pensadores.
Ainda convivi, nas românticas redações de jornais, com repórteres e cronistas que se reuniam, depois de concluída a edição do jornal, fechada a última página, para comentar os acontecimentos do dia.
Ao final da década de 1970, passei a frequentar a redação de O Norte como copiador de telegrama das agências de notícias e, eventualmente, repórter noturno. Participei de grupos que, entre uma cerveja e outra, muitos assuntos comentávamos.
Tomei conhecimento de que Nathanael, Martinho Moreira Franco e Gonzaga Rodrigues discutiam entre si os artigos antes de sua publicação. Eles compunham uma versão mineira dos “quatro cavaleiros do apocalipse”, grupo de Minas Gerais formado por Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pelegrino e Paulo Mendes Campos e que ganhou dimensões sempre lembradas pelas produções literárias de cada um.
O trio paraibano afinou o passo, ou melhor, a escrita, e revelou os caminhos para a crônica como literatura. Cinco décadas depois, Gonzaga mantém o hábito semanal de publicar uma crônica resgatando fatos do cotidiano com a maestria de sempre. Martinho e Nathanael alcançaram outra dimensão. Todos deixaram seu legado na imprensa paraibana, sobretudo como cronistas do cotidiano.
Nos anos de 1980, ainda engatinhando no mundo das letras, recorri aos conselhos de Nathanael. Depois que o vento anunciou sua presença entre as estrelas no firmamento, Gonzaga continuou me dando o compasso da escrita.
Uma frase fora do contexto em recente crônica sobre o beija-flor que fez ninho no pátio da empresa onde trabalho foi motivo para me chamar a atenção. Gonzaga me telefonou apontando o deslize.
Em quase cinco décadas de convivência, aprendi bastante com os três amigos – Nathanael, Martinho e Gonzaga. Eles raramente escreviam uma frase troncha. Com o passar do tempo, amiúde, Gonzaga revelou as raízes da boa forma na elaboração da frase, no uso da palavra correta.
Esses amigos e mestres deram lições que me prepararam para convivência com as palavras, com as artes e com os livros. Com os monges primitivos, aprendi que caminhar purifica os pensamentos e evita usar palavras desconexas ao escrever um texto. É sempre valioso o olhar crítico de alguém, mais precisamente de um estudioso ou de um crítico literário.
Desde os primeiros passos no jornalismo, há pelo menos cinco décadas, os conselhos de Gonzaga vieram se juntar ao que Nathan transmitia. Escrever é buscar, sempre, a magia das palavras para montar o retrato que se deseja.
Dos três, me resta Gonzaga, a quem recorro nas minhas aflições literárias.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
SERVO SILENCIOSO.
No dia 18 de junho de 1967 foi promulgada Carta Apostólica pelo Papa Paulo VI que instituía o Diaconato Permanente, após o seu restauro pelo Concílio Vaticano II, ocorrido em Roma no ano de 1965.
A restauração do diaconato representou uma das tantas novidades suscitadas pelo Concílio como avanços na Igreja que dava sinais de cansaço. Três anos depois dessa carta assinada pelo papa foram ordenados na Paraíba por Dom José Maria Pires os quatro primeiros diáconos casados.
Acreditamos que o diácono existe não porque faltam padres, mas porque é necessário à Igreja. Foi assim na época dos apóstolos e igualmente agora, porque completa a estrutura orgânica sacramental e ministerial das três dimensões: diácono, padre e bispo. O diácono tem sua identidade própria. Assumindo suas atividades, deixa o padre liberado para exercer as funções que somente este pode fazer.
Semelhante ao tempo quando de sua restauração cinquenta anos atrás, as comunidades hoje estão ávidas e sedentas de pastores, pois se sentem sozinhas, com inquietantes provações de toda ordem, espiritual, social e econômica.
Décadas depois este ministério parece contabilizar avanços dentro da Igreja. Cada vez mais dioceses recorrem a homens casados para suprir as necessidades de ministros ordenados nas comunidades, porque os padres já não dão conta de tantos afazeres.
Percebe-se por experiência própria que as comunidades acolhem com solicitude e carinho o diácono, porque veem nele a continuidade da mão estendida do padre para atendê-las em suas necessidades espirituais. Exercitando a dimensão sócio caritativa e a liturgia prevista nas normas da Igreja, é chamado ao serviço da mesa, a cuidar dos pobres, a proclamar a Palavra.
Diariamente também exerce seu ministério de serviço no ambiente de seu trabalho e no mundo onde alguns andam um pouco fora da Igreja, destacando os valores da virtude da caridade e da justiça. Seus gestos devem ser um convite para que as pessoas façam o mesmo.
Apesar de existirem padres que ainda não compreenderam a necessidade e as funções do diácono, esses precisam entender que o diácono é o primeiro colaborador do pároco, está ao seu lado para ajudar nos serviços pastorais na área da paróquia. É um colaborador do bispo e da Igreja, como são os sacerdotes.
O diácono deve fazer com que seu ministério ganhe dimensões louváveis na Igreja a partir da perseverança na oração, na dedicação ao serviço e no uso do seu tempo na missão, mesmo em sacrifício do lazer com a família.
Ser diácono não é uma promoção do leigo, porque esse tem seu papel específico na Igreja, mas se trata de uma contribuição para fazer com que todos tenham uma vida de serenidade. Não é um ministério de poder, mas de serviço, do exercício constante da caridade, porque chamado à vida de simplicidade, de humildade.
Não entendo o diácono ausente do servir e defender pobre, ao estudo da Teologia da Libertação.
Tantas décadas depois, ainda se tem um longo caminho a percorrer, porque existem comunidades isoladas pela falta de pastor. Nesses lugares o diácono deve chegar, como servo silencioso, para ajudar a suscitar uma vida nova.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
COMBLIN, 100 ANOS.
No ano do centenário de nascimento do Padre José Comblin (1923-2023), foi oportuno relembrar sua caminhada na Igreja do Brasil e da Paraíba. Mesmo que tenha sido pouco lembrado, mas valeu a pena.
Uma caminhada iniciada quando aqui chegou com outros sacerdotes europeus, em junho de 1958, logo construindo amizade com a Igreja que buscava novos caminhos para estar mais perto do povo.
Depois de uma estadia de três anos no Chile, retornando ao Brasil, conheceu o então Padre Marcelo Pinto Carvalheira, em 1965, que o estimulou vir morar em Recife. A pedido de Dom Helder Câmara, passou a atuar na linha da Teologia da Libertação, que buscava recuperar o rosto profético da igreja do tempo dos apóstolos, em que todos tinham tudo em comum, ajudavam-se, repartiam o que possuíam, de modo que não tivesse necessitado nas comunidades onde residiam. Era preciso voltar à Igreja da opção preferencial pelos pobres, sem, contudo, deixar de olhar para os afortunados.
Depois de conhecer o Nordeste, Comblin descobriu a obra missionária de Padre Ibiapina e deste recolheu ensinamentos que ajudaram a montar a proposta que tanto sonhava, que era justamente a de uma Igreja ainda mais servidora.
Junto com outros teólogos, trouxe um novo modo de ensino para os seminaristas, que era no sentido de atuar a partir do “ver”, “julgar”, “agir”, que depois ficou conhecido como “Teologia da Enxada”, colocado em prática na Paraíba. Tempos depois as Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s) tomaram corpo, animando as famílias que desejavam mais espaço também dentro da Igreja.
Foi semente a germinar movimentos sociais que, com firmeza, surgiram nas décadas de 1970 e 1990 e adentraram no novo século, dando voz às reivindicações das famílias que viviam à margem da sociedade, principalmente no meio rural.
Tudo levava a descobrir os sinais de fé, de amor e de esperança.
Agora, quando lembro destes acontecimentos, por ocasião dos 100 anos de nascimento de Padre José Comblin, recordei que completou 10 anos da minha primeira visita ao seu túmulo, em Santa Fé, na divisa entre Arara e Solânea, quando ocorreu um ano depois de sua passagem deste profeta e estudioso do Evangelho. O que me chamou a atenção foi que tinha nascido sobre sua cova uma florzinha, entre da terra seca e seixos, como a nos apontar a esperança que brota do lugar esturricado.
Como recordou Padre José Floren, com quem teve diversos encontros e juntos realizaram trabalhos comunitários na Igreja, cabe-nos dizer, emocionado e agradecido: muito obrigado, Padre Comblin. Obrigado pelos ensinamentos, por nos ter ensinado a rezar de modo diferente e a conhecer melhor Nosso Senhor Jesus Cristo e o seu Evangelho com um olhar para os necessitados.
Como disse Padre Floren, Comblin abriu-nos os olhos, os ouvidos e o coração para o grito dos excluídos e para pensar o futuro da Igreja. Aprendemos muitos a refletir com seus 70 livros publicados e mais de 400 artigos produzidos em quase sete décadas de estudos.
Ele nos deixou um legado sobre vocação e missão, mostrou exemplo de simplicidade, de amor ao povo e fervor missionário.
Podemos dizer, a partir de uma definição de Padre Floren, que nosso amado Comblin sonhava com uma Igreja “povo de Deus”, menos clerical e mais comunidade. Menos do passado e mais do futuro, menos do direito canônico e mais do Espírito Santo, menos acomodada e mais missionária e samaritana.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
O PRIMEIRO VOO DO BEIJA-FLOR.
Sempre quando chegávamos ao local do trabalho, antes de qualquer atividade, íamos até a árvore onde o beija-flor preparou seu ninho, botou dois ovos, chocou-os e criou seus filhotes, até voar para a liberdade.
Na realidade, o pequeno ninho chamava a atenção desde o momento em que o beija-flor preparava sua obra de arte. Observávamos à distância o repouso dos filhotes. Um trabalho silencioso, meticuloso e persistente que me trouxe certas lições, pois lembro de empreendimentos que foram abandonados ao primeiro empecilho.
Grandes sonhos carecem de grandes atitudes.
O obstáculo do beija-flor foi o local escolhido para edificar seu ninho. Lugar movimentado, a baixa altura da árvore e a ventania no local dificultava a sua construção.
Muitas vezes observei beija-flores construindo ninhos nas árvores que tínhamos em redor de nossa casa em Tapuio, isso porque mamãe cultivava jardim com flores de diversas espécies, o que os atrai. Era um vai e vem de beija-flor pelas bordas do jardim, que depois desapareciam e retornavam logo a seguir.
Quando eu cresci, continuei a observar o esvoaçar dos beija-flores do jardim de minha mãe. Fui embora para outras terras, mas levei comigo os voos daqueles pássaros que não cantavam como os canários, os pintassilgos e os galos-de-campina, mas chamavam a atenção pelo modo com que se aproximavam das flores e rodopiavam para captar o néctar, em sadia disputa com as abelhas, em bonito bailado.
Quando percebi que o beija-flor chocava os avos, passei um tempo sem me aproximar para não incomodar a mãe carinhosa. Depois que os filhotes nasceram e cresceram, em certas ocasiões, observava os dois agarradinhos. Um maior e outro menor. Cresceram, sempre iguais nas cores das penas brancas e pardas.
Cheguei atrasado na manhã, com o sol vencendo as folhas das árvores, iluminando o ninho ocupado pelo filhote menor, porque o irmão maior alçou voo cedo do dia. Era preciso não o espantar, dei um passo para atrás. Fotografei, como das vezes anterior. Precisava registrar aquele instante, como procedi em outras ocasiões. Permaneci por instantes a beber da poesia do olhar e dos gestos do passarinho acomodado em seu ninho.
Era tempo do beija-flor iniciar sua travessia. A pequeno beija-flor, do tamanho do dedão do pé de uma pessoa, iniciou sua travessia em voo rápido, indo para uma árvore mais alta. Se não acompanhasse seu irmão naquele momento, ficaria à margem de si mesmo. Precisamos compreender o tempo de nossos próprios voos. Como disse o poeta “E o tempo da travessia, se não ousarmos fazê-la teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa).
O beija-flor buscou novas paisagens, novos encontros. Foi estar com seu irmão, estar com sua mãe. É preciso buscar outros horizontes. Ficar atento para entender o momento de caminhar, como revelou o poeta lusitano.
Tenhamos a certeza de que sempre haverá alguém a nos proteger, a nos guiar. Na minha curiosidade, ao chegar perto do ninho vazio, eis que ligeiro como um raio, o beija-flor mãe passou roçando minha cabeça, como que a dizer, afasta-te daí, tão rapidez que não percebi o ruge-ruge das asas.
Fiquei a contemplar o ninho vazio. Como é belo seu traçado de penugens, meditei sobre as cenas presenciadas naquele dia e nas vezes anteriores. Em toda minha vida, poucas vezes estive tão perto desse pássaro esquivo e belo.
Minha alma ficou maior depois daquele dia. Construí um novo advento na minha vida. Há sempre distante uma estrela a brilhar. Veremos essa estrela quando olharmos com os olhos do coração. Então, estaremos sempre voando para cruzar a travessia. Sempre tem o primeiro voo do beija-flor.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
SINAIS DE AVANÇOS NA IGREJA.
Desde quando o Papa Francisco, este revelador de novos caminhos da Igreja para escutar a voz dos campos e das ruas, tornou conhecida Fiducia Supplicans, uma declaração do Dicastério para Doutrina da Fé, em 18 de dezembro de 2023, dando conta de que poderia ser ministrada benção a casal do mesmo gênero, desde que não caracterizasse matrimônio, surgiram muitas polêmicas. Barulho desnecessário. Vamos direto ao assunto: Jesus acolhia a todos que dele se aproximavam ou escorraçava? Selecionava a quem abençoar?
Para responder a estas perguntas, fico com as respostas do padre Waldemir Santana, meu professor de Profetismo, profeta inquieto que clama no deserto da cidade e em mar revolto navega no seu pequeno barco.
Sobre a decisão do papa, baseada na decisão do Dicastério para Doutrina da Fé, padre Waldemir Santana tentou esclarecer o tema abordado.
Como era esperado, afirma ele, “grupos movidos por uma ideologia religiosa enlouquecida, iriam reagir ferozmente a essa declaração. A união homoafetiva precisa e deve ser refletida com mais seriedade e respeito”.
Depois de afirmar que “de uma caterva de enlouquecidos, após a referida declaração, não se pode esperar nada, a não ser condenações e julgamentos precipitados”, padre Waldemir Santana acrescentou. Faço minhas as suas palavras:
“As mudanças ocorridas na sociedade são significativas, isso nos leva a entender que as uniões de afeto entre almas humanas do mesmo sexo precisam de maior entendimento que ultrapassa os moralismos doentios. A união homoafetiva configura uma relação amorosa homossexual. O termo homossexual vem da derivação do prefixo grego homos que quer dizer semelhante, com o sufixo sexus, que se refere ao sexo, portanto, a relação existente entre pessoas do mesmo sexo.
A reflexão sobre a relação homoafetiva, exige uma antropologia de base que supere preconceitos arraigados entre as pessoas, principalmente, as pessoas religiosas. A pessoa que possui sentimento afetivo homossexual possui o mesmo sentimento que outra pessoa qualquer, só que direcionado a pessoa do mesmo sexo. A homossexualidade é um tema bastante discutido, ainda não pacificado, mas hoje com o avanço do conhecimento humano, o entendimento dessa manifestação como opção, doença ou característica hereditária já foi superado pela medicina e outras ciências.
Com as mudanças de valores e costumes, as relações homoafetivas foram ganhando visibilidade no meio social, mas ainda há resistências que, também, tem alto nível de visibilidade.
A união homoafetiva tem sido tratada no âmbito do direito civil e não pela vara de família. Por outro lado, deve haver o reconhecimento de um patrimônio que foi construído juntos, em caso de dissolução da relação, que haja uma divisão proporcional de bens.
A relação entre pessoas do mesmo sexo deve ser baseada na ligação afetiva e duradoura e merecedora de proteção jurisdicional. O poder judiciário avançou na compreensão do problema, a Igreja com essa declaração está dando um passo significativo no campo do cuidado pastoral.
A sexualidade não pode ser reduzida a genitalidade, pois, empobreceria a própria relação e obscureceria outros elementos importantes da relação. A sexualidade implica no envolvimento afetivo e as manifestações amorosas entre as pessoas. Grupos extremistas de católicos na igreja estigmatizam as uniões homoafetivas na sua dimensão mais íntima e profunda.
A sexualidade para muitos clérigos, continua sendo um terreno pantanoso que traz riscos a quem ousa modernizar a concepção antropológica da igreja sobre a sexualidade humana. Aqui, a instituição, fica travada em concepção já superada pelo conhecimento humano.
Abençoar as pessoas homoafetivas não é um favor que se faz, mas é um direito que essas pessoas têm como filhos e filhas de Deus. A declaração é clara e não deixa margem para dúvidas: é uma bênção e não uma celebração do sacramento do matrimônio. Em que uma bênção contradiz ao projeto de Deus? Os padres que já estão se manifestando dizendo que não abençoarão esses casais, que a declaração intitula de união irregular, no entanto, abençoam cachorro, gato, carro, instituição bancária, só não abençoa dois seres humanos que partilham os mesmos afetos recíprocos. Quanta hipocrisia!
Não há nenhum vestígio de rejeição preconceituosa em relação à alguma pessoa nos Evangelhos. Devemos levar em consideração que as leis, as prescrições são algo que não podemos prescindir, mas são, também, instrumento, quando usurpados pela interpretação humana, que divide, que interpõe obstáculos, permitindo que se faça a distinção no qual há os bons e os maus. Assim sendo, a Igreja não pode guiar eficazmente as pessoas que lhe foram confiadas com a multiplicidade de prescrições, proibições e julgamentos negativos.
O ser humano é um bem na sua plenitude e concretude que pede para ser abençoado. Quando se abençoa uma união homoafetiva, não é pelo bem do indivíduo, mas pelo bem comum das pessoas. Deve-se levar em consideração que os valores que essas pessoas portam são mais importantes que certas mentalidades jurássicas que envenenam a religião.
É importante é que as reflexões sobre casais homoafetivos não caiam na engrenagem de discussões ideológicas complexas. A declaração da Congregação para Doutrina da Fé enfatiza que a finalidade da bênção é para que tais relacionamentos amadureçam e cresçam na fidelidade ao Evangelho. Para receber essa bênção de forma privada sem nenhuma menção ao rito sacramental, não é necessário que o casal seja obrigado a ter uma perfeição moral prévia como pré-condição para obter a bênção.
O Papa Francisco está abrindo as portas da igreja para os irmãos que até pouco tempo eram considerados refugo, imundície, mas são filhos de Deus amados e queridos, merecedores de todo respeito. Os que resistem a dar uma bênção a um casal homoafetivo não o fazem só por questão doutrinal, mas no fundo existe um problema existencial. A homossexualidade é uma realidade é uma realidade do mundo, inclusive da Igreja. Muitos clérigos da extrema direita, atira pedra no telhado do outro, quando o telhado de sua casa é de vidro.
É inconteste que hoje, na Igreja Católica, nunca se desejou tanto a morte de um sumo pontífice como o do Papa Francisco. Até nas celebrações litúrgicas, certos padres se recusam a citar o nome do Papa na anáfora eucarística. Francisco tem a lucidez do Espírito, por isso, percebe as mudanças que estão ocorrendo no mundo e procura com sua solicitude pastoral responder às grandes questões que estão eclodindo.
Vida longa para Papa Francisco!”]
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
INFINITO EM SUA PATERNIDADE.
O gesto de paparicar netos, que extrapola o carisma de pai, ecoa no convívio com os Avôs.
Numa perspectiva de vida longa, quando nasce um neto, completa-se o ciclo da existência humana. Mesmo que a vida se prolongue por mais tempo.
Como pesquisador de sentimentos íntimos, recolho nos netos os gestos dos filhos, nos mistérios do amor de pai.
O neto é o espólio recebido sem merecer. Brota da semente do filho, e desta, em replantio, germinou com novas vidas. Simples de explicar, e profundo no sentir. Tendo-o nos braços, principiamos sensações de diferentes etapas da biografia de afetos.
A escritora cearense Raquel de Queiroz afirmava que o neto “é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo…”.
Nesse sentido extrapassa horizontes do prazer, é indescritível ser avô. Avô que acolhe o neto renovado em bênçãos, como pétalas invisíveis semelhantes às luzes de todos os solares.
Quando fazemos memória de Santa Ana e São Joaquim, revelados como os pais de Maria, a mãe de Jesus, recolhemos no abraço os filhos de nosso sangue, pequenos, mas imensos em asas douradas de anjos a pontilhar os caminhos derradeiros no horizonte.
Quando surgem nuvens do esquecimento no entardecer da vida, lembranças dos filhos pequenos começam a sumir da mente, mas a presença dos netos é o consolo. As primeiras palavras balbuciadas, a benção do vovô, os bracinhos agarrados ao pescoço, os gracejos em nos acarinhar, as primeiras letras rabiscadas no papel, o primeiro livro a manusear…, tudo se transforma em temas para composição da história de nossa vida. Nada paga as alegrias dessas descobertas.
Nos netos, recordamos os filhos quando criança, e buscamos imagens adormecidas da nossa infância.
Haverei de recolher meus netos em um poema, uma palavra guardada no coração. Suas brincadeiras e os sorrisos espontâneos, como pétalas de rosa azul haverão de permanecer no jardim das lembranças.
Serei para meus netos o ancião de mãos trêmulas, de cabeça branca a apontar para a aurora sorridente, a revelar gestos dos antepassados. Como avô ou avó, seremos aqueles que buscam a infinda liberdade para amenizar a dor e a ansiedade na proximidade do pôr-do-sol da vida.
Qual promessa farei aos meus netos, quando o mundo brutaliza as relações? Pergunta angustiante!
Avô quer chão fértil para o roçado dos netos, mais fecundo do que tiveram os filhos. Terra com águo espiritual onde obtenha colheita superabundante de paz e felicidade completa.
Os netos confirmam nosso envelhecimento e com seus afagos noticiam a proximidade de nossa caduquez. Trazem um princípio de esperança na continuidade da descendência.
O neto é gostado com ardente afeto, esse amor que extrapola limites da paixão humana, que chega ao êxtase do bem-querer. Com brincadeiras, criam paisagem mítica e eleva a alma ao alcance cósmico.
Para as perguntas de Deus que os adultos são conseguem responder, as crianças têm a resposta. Portanto, prestemos a atenção aos gestos e as palavras das crianças e conheceram os caminhos simples que levam a Deus.
Seres tão pequenos nos fazem eremitas no deserto do nosso lar. Os jardins dos avôs riem com as futuras moças e rapazes, quando os pássaros aplaudirão a todos com suas asas, os livros falarão de mundos e sonhos.
Nada distancia o avô do neto, como fez o poeta Juca Pontes que carregava o olhar ao rio da infância visto da casa-grande, em cujas “águas do Capibaribe flutuam os sapatos do meu avô”.
Ao final deste texto, o poeta francês Victor Hugo, imenso na sua produção literária, acode-me com uma saudação aos netos:
Sou um avô que ultrapassou todos os limites.
Triste, infinito em sua paternidade,
nada mais sou do que um bom e velho sorriso teimoso.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
QUANDO CHEGAVA O NATAL.
Está longe e faz muito tempo. Lembro quando foi o Natal que conheci, o primeiro é o último vivido em Serraria, depois de muitos tentar recordar as oportunidades reveladas a cada badalar o sino a meia noite.
Era o menino de seis anos. A vida estava em volta dos muitos que habitavam os sítios e percorriam as veredas e caminhos que levavam ao mesmo lugar.
A folhinha e a chegada da safra do caju definiam a data dos preparativos. Nunca garatujei mensagens, mas as mensagens chegavam com a felicitação da boa nova do Natal e do Ano Novo que mamãe guardava. Depois, com o passar dos tempos, as meninas passaram a cuidar da árvore de Natal.
A casa não tinha muros, mas janelas escancaradas para receber a brisa e o sol que se esparravam pelas salas. No cantinho da sala, a árvore feita de galho de sucupira era coberta de papel celofane e com lã de algodão. Caixas de fósforos cobertas com papel se transformava pequenos presentes que ficavam pendurados nos galhinhos, dando clima natalino, tão esperado. Tudo nos fazia ver o menino que não brincava conosco.
No mais, eram o mulungu, os cedros e as laranjeiras em redor da casa que coavam a luz do sol e as nuvens se engalhavam.
A vida partia de dentro de casa para se misturar com as pessoas que passavam na estrada em frente a caminho de Serraria, com roupas novas, fruto da lavoura. Algumas levavam o sapato na mão para calçar na entrada da cidade. Quando não entravam para uma “bicada” de cana na bodega, acenavam em gestos fraternos e camaradas.
Nunca rabisquei nada sobre as flores do Natal e Ano Novo, tudo o que imaginava se misturava na minha imaginação, os maturis, as flores, os frutos do caju e da manga apareciam neste período do ano, quando não retardava a chuva de verão.
Os frutos pendurados nos galhos, os bolos e sucos na mesa consumidos com os olhos antes do anoitecer. “Não toque antes da hora”. A hora que não chegava. Muitas vezes o sono chegava antes da hora de consumir o que estava guardado para a noite de Natal.
Nada de presentes. O maior presente era relembrar o nascimento de um menino que tinha o nome de todos nós, e nem sabíamos onde morava.
O menino anunciando para o ano novo. Ano novo que chegava fora, antes de chegar em mim. Ano novo que chegava com novas folhagens e roçados sendo preparados. Tinha a noção abstrata do tempo e de folhinhas secas espalhadas pelo terreiro. Tempo revelado quando os galhos estavam penso com o peso das frutas.
O Natal e Ano Novo que se comunicavam com a chegada pelas flores e no sentido dos frutos, consumidos como manar.
O sítio Tapuio vivia o encantamento, o poético, o mais universal gesto de igual sentimento.
Nas orações, os mais velhos pediam prosperidade, saúde e paz. O espírito do céu e da terra invocado desde nossa descendência, que se revelava neste período para a eternidade aparecer nos gestos e nos sentimentos.
No íntimo, se pedia a germinação das benções. Verdes para os campos, da terra brotar fartura e nos riachos a água para saciar a sede. Nos versos de Miguel Angel Austúrias, hoje revejo na mais poética e universal visão, igual no sentimento do chamando:
“Espírito do céu. Espírito da terra. Dai-nos nossa descendência, nossa posteridade, enquanto houver dias, enquanto houver alvoradas”.
Acordávamos com os sinos a badalar na manhã tão esperada. Salve o Natal de 1960.
Ainda hoje desejo que a germinação de faça! – como cantava o poeta.
“Que numerosos sejam os verdes caminhos, as verdes sendas que nos dás!”
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
A MÍSTICA DOS ANTIGOS TEMPLOS.
Entro na Igreja da Misericórdia como quem busca o recolhimento em um templo antigo para a renovação da alma que busca arrependimento e perdão.
Os velhos templos religiosos, mais do que os de edificação recente, que são amparados na visão da modernidade, recolhem a mística da igreja reunida para a vivência da fé.
A Misericórdia é uma das quatro igrejas mais antigas da Paraíba. Construída em pedra calcárea esculpida pela mão dos tabajaras e potiguaras, sob a inspiração de jesuítas que trouxeram a visão da fé para o mundo novo que se descortinava, ajuda a observar o Deus invisível, que se revela na alma e transforma a rudeza do homem e da mulher.
Desde antes, como hoje, a presença do Divino no mundo povoado de gestos que transformam pessoas em fera, como canta o poeta, fera cada vez mais violenta em atitudes, chega como sinal fundamental de transformação dos corações. Então a pessoa, mesmo entupida pelas vozes agourentas e carnívoras circulantes ao redor, modelada pela brutalidade de bichos-do-mato, quando chega a um templo religioso, ainda mais nos antigos, pode ser transformada pela paisagem do seu ambiente.
Eu sinto essa transformação interior quando entrou em uma igreja, sobretudo nas mais antigas, de grossas paredes esculpidas por mãos puras, como são as que foram erguidas pelos nossos irmãos indígenas e caboclos.
Se Jesus falou de que o templo invisível de nossa alma seria edificado em três dias, antecipando a sua ressureição após a crucificação no madeiro, com o passar dos tempos a Igreja, iluminada pela força do Espírito Santo, percebeu que a imponência do visível aos olhos muito ajudaria na construção do templo da alma.
Suponho que na antiguidade a construção de belas igrejas teve como intuito se tornar o lugar onde o povo pudesse se reunir para renovação espiritual de forma coletiva e, assim, aprender a conviver em sociedade baseada na caridade.
Quando flutuamos pelas veredas da vida, semelhantes a barcos que flutuam em águas agitadas por ventos incertos, nas catedrais antigas encontramos ancoradouro para reflexão.
Nas pedras calcáreas da Misericórdia está a presença do homem criado a semelhança de Deus. Lugar para onde convergem todos os necessitados, os que buscam um recanto para seu recolhimento, quando outras portas se fecham. Neste lugar santo se acalmam todas tempestades da alma. O Deus invisível apazigua as tormentas.
Os conjuntos arquitetônicos, sobretudo os mais antigos, comovem com seus esplendores, e silenciosos, nos falam de Deus.
Se foram construídos para ostentar o poder econômico-social, transformaram-se em lugares reservados para acolhida dos cansados e angustiados. É quando o belo da Arte se manifesta como alimento espiritual.
Imagino quanto fervor sente o homem ou a mulher ao contemplar as abadias medievais e os mosteiros antigos onde há uma relação próxima destes lugares com Deus, terra e céu se unindo no mesmo olhar. Ambiente de silêncio, onde se busca e se encontra a unidade na oração.
Estas Igrejas cristãs primitivas, bizantinas e medievais, foram construídas como verdadeiras obras de Arte, de doutrinação dos fiéis.
Como não sou de muitas andanças, ao contrário do poeta Germano Romero que percorreu os mais destacados lugares do Velho Mundo para captar suas belezas e sua energia, caminho pelos arredores de nossa paisagem que os europeus trouxeram há quinhentos anos, observando com irrevelável sentimento os conjuntos arquitetônicos São Francisco, São Bento e Igreja do Carmo, mas é na Misericórdia, a igreja mais humanizada da Paraíba, onde permaneço calado durante horas. Para ali correm os degredados, os esquecidos e esfomeados que a cidade abandonou, para receberem a acolhida e se aquecerem na chama invisível que nunca se apagar.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
JESUS, DIÁCONO
Jesus é diácono por excelência, foi o primeiro a servir em plenitude aos que dele se aproximavam. Desde os primeiros momentos quando apresentava o Reino de Deus como essencial na vida das pessoas, no sentido de exercitar a koinonia cristã em sua perfeição. Na comunidade de seguidores, constituiu-se no primeiro diácono. A instituição da Eucaristia, a Crucificação e a Ressureição marcam gestos de suprema diaconia. Ele, servidor, abraçou com fervor o projeto de Pai.
A diaconia de Jesus se concretiza, plenamente, na Cruz, de onde brotaram os caminhos da Salvação, tornando-nos participante de sua vida.
O objetivo da diaconia de Jesus é a humanidade, sobretudo com olhar para os pobres, porque Ele é o Servo por excelência. Cristo é servidor da unidade. E diácono da ternura. Uma ternura que repercute até os dias atuais, eternizada em gestos e atitude de seguidores espalhados por todo o Universo.
Servo da solidariedade, bom samaritano, Jesus colocou sua vida a serviço dos homens, não hesitou lavar os pés, servir e cear com os Apóstolos (Mc 14, 22-24; Lc 22,17-20; Mc 10,43-45; Mt 10-24). A cada celebração da Eucaristia é repetido o gesto para cada um de nós, no Pão e no Vinho partilhados sua presença e sua energia que nos impulsionam e alimentam.
Pão partilhado, vidas renovadas. Renovadas na esperança e na crença no pedaço de pão e no gole de vinho purificados. Vidas conduzidas pela fé.
O diácono dos tempos passados e de hoje quando olha para Jesus, supremo diácono, é convocado a levar a mensagem deste a todos os recantos. Um serviço executado pela fé, na esperança com caridade, porque, como Ele disse, quem faz isso “é a mim que o fazei”.
Revela o Papa Francisco em momento de inspiração, se o diácono deseja seguir a Jesus, deve plenamente imitá-lo. Ser humilde de coração e compreensivo em relação ao povo, além de saber preservar a fé, guardar o que lhe foi confiado, evitar conversas frívolas (1Tm 6,20), estar disponível a escutar o povo.
O belo é um ideal difícil de ser conquistado. Sendo o mais belo personagem da História da humanidade, Jesus deu beleza estética na ternura do diácono.
Assim como Jesus, que foi diácono no silêncio, sejamos nós, diáconos, os olhos da Igreja para não esqueça os pobres, sobretudo os oprimidos.
O poeta Jorge Luís Borges afirmou em um de seu livro que todo o presente é verdadeiro e que “Deus, de Quem recebemos o mundo, recebe de Suas mãos criaturas do mundo”.
Meditando sobre este pensamento do poeta argentino que perdeu a visão para melhor ver com os olhos do coração, cheguei a uma conclusão de que devemos trabalhar as criaturas para revolver a Deus em estágio de compreensão do mistério da vida e da morte, da Eucaristia e da Ressureição.
Fiquei a pensar que o homem é capaz de desenhar o mundo, e ao longo do tempo povoar os espaços com obras e ações capazes de contribuir para melhorar a vida das pessoas, seja das cidades ou das montanhas. A missão é a mesma.
Somente podemos dar aos irmãos aquilo que captamos do coração e revelamos pelas palavras, o que não é menos íntimo, a ser útil no hoje e no amanhã. “Só podemos dar o amor, do qual todas as coisas são símbolos”, afirmou o Borges, em julho de 1968.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
A IGREJA E O LIVRO
A leitura é o caminho para as conquistas pessoais e espirituais.
Partindo do princípio de que a Igreja deve estar ao lado do povo, ouvindo seus anseios e reunindo todos para caminhar irmanados, partilhando alegrias e ansiedades, esta deve fazer com que o livro chegue às mãos de crianças e adultos, porque é uma das primícias de elevado conteúdo para atingir elevado valor humano.
O hábito da leitura não deve ser apenas estimulado na escola, o que nem sempre acontece com a ênfase desejada, mas é em casa onde tudo começa. Como também na comunidade onde as pessoas de reúnem.
Justamente nesse ponto é que deveria entrar a participação da Igreja, com o estímulo às famílias para o hábito da leitura, inclusive começando pelas crianças. Ajudar acessar o livro, instalar bibliotecas em suas dependências e promover campanhas educativas nessa direção. Não basta salvar as almas, é preciso salvar vida. A cultura, a educação, a poesia salvam vidas.
Como poderia acontecer isso. Bastante simples. Começando na catequese com crianças, quando estas entram em contato com os preceitos da Igreja e da Religião. Pelo menos assim imagino. Na conversa com os pais, no diálogo com as crianças, o livro seja um instrumento presente. Todos esses momentos, suponho, são oportunos para estimular ao acesso à leitura.
Como isso será ministrado, não vejo tanta dificuldade, afinal, todos trabalham com o manuseio da palavra. A palavra oral e escrita. Então, como parte dos ensinamentos propostos como formação do catequizando, oferecer condições para exercitar a leitura seria um caminho para se criar amor ao livro, o gosto pela leitura.
Todos sabemos que pela leitura é possível se descobrir valores humanos, verdadeiros tesouros guardados no coração das crianças, dos jovens e dos adultos. Em muitos casos, precisam de oportunidades para expor talentos.
Nossa Igreja tem bom material de apoio às crianças quando se trata de oferecer aprendizado básico com sobre religião, princípios éticos e morais, que mostra como deve se comportar um cristão.
Imagino um dia em que nos salões paroquiais existiam bibliotecas com livros de todos os gêneros, abertas às mentes e corações. As mãos que purificam o vinho e o pão transformando o livro em alimento para o espírito, ajudando a transformar vidas humanas e pessoas em verdadeiros santuários do Espírito Santo.
E do conhecimento de que a Igreja, desde os tempos da concepção da prensa por Gutemberg – que permitiu imprimir textos -, foram adotadas práticas de repulsa a certas obras literárias. Obras somente eram publicadas após aprovação de um bispo que concedia o selo de imprimatur (“seja impresso”).
Para ficar no campo da ficção literária, cito apenas obras de Victor Hugo, escritor francês que teve as obras Os Miseráveis e O Corcunda de Notre-Dame censuradas pela Igreja.
O livro Os Miseráveis aponta o governo como opressor e a adversidade da sociedade. Já O Corcunda de Notre-Dame o autor mostra o desfigurado Quasímodo sendo avaliado pela aparência física. As obras eram consideradas sensuais e porque apontavam a diferença social da época.
Outro francês, Alexandre Dumas, também tinha suas obras censuradas, como O Conde de Monte Cristo, cujas personagens se envolvem em suicídio, adultério e consumo de haxixe.
Se aconteceu isso no passado, bem recente Leonardo Boff teve seu livro Igreja: Crisma e Poder, por defender a teoria da libertação, foi igualmente censurado, passando a viver “um silêncio obsequioso”.
Sem esquecer a história, passemos a estimular a leitura. A Igreja pode contribuir de maneira significativa nesse ponto.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
DE MÃOS ESTENDIDAS.
Há uma passagem bíblica que faz referência à riqueza e ao desapego do luxo. “Se queres me seguir, vende tudo e doa aos pobres”. Lembro disso quando há silêncio no momento em que se completaram os 50 anos da morte de Padre José Coutinho, nosso maior benfeitor de todos os tempos, à semelhança de Padre José Maria Ibiapina, no século 19. Um padre que pedia esmolas para alimentar os pobres.
Em escaldante dia de sol de novembro, o fundador do Instituto São José e do Hospital Padre Zé, em cadeira de rodas, sob o guarda-sol, o suor do rosto umedecendo a toalhinha, a batina preta cobrindo as pernas inchadas enquanto pedia esmolas, como fazia há décadas, passou mal e foi levado às pressas ao hospital, onde faleceria dois dias depois.
Nascido em família católica, com tios padres, influentes na Igreja da Paraíba no final do século 19, a história de Padre Zé Coutinho é pontilhada de incomparável desejo de servir, cuja base foi edificada na infância quando seus pais, donos de muitas terras, se constituíram benfeitores na região de Esperança, Pocinhos e Serraria. Seguir o caminho do sacerdócio foi uma decisão tomada na adolescência, logo acolhida por todos.
Ordenado padre em 1920, não perseguiu cargos na Igreja, mas se aproximou de quem poderia ajudar a minimizar a situação de penúria das famílias residentes nas periferias da Capital, onde a pobreza mendigava. Foi quando muitos pobres passaram a olhar uma luz distante no horizonte.
Cedo ele procurou forrar-se de virtudes teologais e ensinamentos filosóficos para compreender as paisagens humanas construídas tendo como base fé cristã. Se não tinha sede de conhecer certos conceitos da religião, era um homem culto que abraçou a causa dos pobres baseado na sabedoria da Palavra de Jesus, por isso edificou fecundo trabalho em favor dos excluídos.
Parece que ouvia a assertiva do Mestre: “Se queres me seguir, vende tudo e doa aos pobres”. Assim procedeu, pois, quando recebeu herança de seu padrinho e de familiares, sendo uma fazenda em Pocinhos e engenho em Serraria, vendeu-os para repartir com os necessitados, pois investiu tudo no Instituto São José e na modesta casa de acolhida, para amenizar a dor de agonizantes. Igualmente, aconteceu com a fazenda no bairro de Mandacaru, doada pela senhora Iaiá Paiva, permitindo que famílias ocupassem e construíssem suas casas.
Em sua trajetória de vida religiosa, não desviou o olhar da pobreza, não praticou gesto desgastante para a Igreja. No entanto, elevou gestos bondosos para dignificar a vida dos desprezados pelas autoridades governamentais. Ele foi um interlocutor para retirar do encurvamento social, de prostração e da inabilidade muitos que estavam em situação de exclusão.
Quando aportei nesta cidade em 1971, conheci este padre que percorria os salões de festa e postava-se às portas dos cinemas para pedir esmolas, sempre com retumbante “meu prezado, não esqueça de ajudar aos meus pobres”, enquanto tocava ao ombro de alguém com a vareta de sucupira.
Conheço pessoas que à época, jovens, empurraram sua cadeira de rodas. Convivi com pessoas que estiveram sob seu teto, receberam ensinamentos que nunca deveriam esquecer. O jornalista Nathanael Alves, o deputado Antônio Medeiros, o procurador do Estado Manoel Raposo, o desembargador Simeão Cananéa e tantos outros que acho razoável não citar mais para não cometer injustiça, o que seria imperdoável, comeram os pirões do padre.
Quando acometido pelos males do corpo, o padre apresentava cansaço, sem condição de manter a residência, jovens médicos dão as mãos para transformar a antiga Casa do Padre em local habitável, relanceando olhar ao crepúsculo acolhedor de antes. A sociedade assumiu o projeto caritativo de elevado sentido, e depois, passou a ser comandado durante anos por uma comissão integrada por membros do Encontro de Casais com Cristo, da Basílica-Catedral Nossa Senhora das Neves.
Padre José Coutinho nunca falou com jactância de seu espólio caritativo, mas revelava-se no pequeníssimo conforto que trouxe para muitos desvalidos. A todos boamente se dedicava sem em nada pedir em troca.
Sabia ser tarefa árdua manter o empreendimento à custa de doações porque era pouca a subvenção do Estado. Nunca esmoreceu diante do infortuno de não ter o que comer nem remédio para curar feridas dos desvalidos. Mas Deus infundiu nele esperança e perseverança.
O Instituto São José, fundado em 1935, e, com muito esforço, em 1965, a Casa do Padre foi transformada em hospital, legado pelo o qual sempre dedicou sua vida porque entendia como cumulação de Deus, apenas sendo sócio benemérito e fiel depositário, sem querer glória.
Meu livro “De mãos estendidas”, sobre este padre que amava os pobres, chegou a terceira edição graças ao apoio do seu sobrinho, desembargador Júlio Aurélio Coutinho, cuja renda foi revertida para o Hospital Padre Zé.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.
PADRE IBIAPINA ABRAÇOU OS POBRES.
Convidado a ocupar este espaço de inestimável valor, devo somente abordar temas relevantes à vida da Igreja, socializando palavras que construam uma sociedade de paz. Assim desejo. Mudará se o momento exigir uma opinião, mas sempre tendo como base a Palavra de Deus. Deverei me prender aos assuntos gerais das atividades pastorais e às abordagens lúdicas para expor uma reflexão, mesmo que não seja definitiva.
A corte doutrinária da religião, os caminhos da Igreja e as indicações similares, deixo para os mestres no assunto, que ocuparão outros espaços nesta página em dias alternados da semana, pois, mais do que eu, são versados em estudos teológicos. Me alimento da Poesia e da Música inspiradas na Palavra dos Profetas, porque procede de Deus.
Para os temas teológicos e tomadas de posições da Igreja, outros colaboradores certamente apresentarão ideias e apontarão pontos de vista, mesmo não sendo os derradeiros, nem os mais eloquentes. No entanto, no meu caso, serão opiniões de quem se debruça no estudo das Letras e do pensamento cristão, olha a vida com poesia e admira as artes. Reservarei o espaço a pequenos comentários de rodapé de página. Tentaremos abordar o fatual, a notícia que ganha dimensão quando analisada à luz do Evangelho, sempre buscando o ponto de vista menos crítico ou opinativo, e mais informativo.
Neste primeiro encontro com os possíveis leitores, lembramos dos 30 anos da abertura do processo de Canonização do Servo de Deus Padre Ibiapina, idealizado pelo inesquecível Dom Marcelo Carvalheira, quando bispo da Diocese de Guarabira, no ano de 1992. Foi um dia memorável, presenciado pelos que estiveram no Santuário Santa Fé, onde existem, na parte mais antiga do lugar, a Casa de Caridade, Memorial, Capela e o Túmulo do Apóstolo do Nordeste, e bem na frente, a poucos metros, o anfiteatro onde são celebradas as datas comemorativas.
O padre-mestre Ibiapina, que completou 170 anos de sua ordenação, foi, ao seu tempo e continua nos tempos atuais, exemplo para todos os que abraçam o sacerdócio, porque aponta caminhos da missão como ponto central de quem deseja servir, tendo como base os ensinamentos de Jesus.
Nos 140 anos de sua morte (ele faleceu em 1883), que foram lembrados no dia 19 de fevereiro, percebe-se que a presença de Ibiapina é ainda mais constante entre os fiéis nordestinos, e pouco entre o clero, mesmo que outros dois grandes nomes tenham surgido no meio do caminho – Padre Cícero Romão e Frei Damião de Bozzano -, ambos com forte apelo popular.
Ibiapina, que viveu em uma área crítica do Nordeste, em época de desolação por causa da brutalidade humana, da seca e da fome, por sua vez, trabalhava como missionário a acalentar o sofrimento de um povo gerado entre os espinhos do mandacaru, na terra esturricada e na poeira das estradas quando os meios de transportes eram nos lombos de animais ou carro de bois.
O modo como este Servo de Deus atuou, desde logo, chamava a atenção. Ele agiu com o compromisso de construir uma sociedade da partilha e da concórdia. Uma sociedade menos injusta, como a Palavra de Deus ajuda a erguer.
Depois que abandonou sua atividade de advogado, de magistrado e de parlamentar ao tempo do Império, ele foi ordenado padre aos 43 anos e, a partir daí, embrenhou-se pelos Sertões do Nordeste para falar de uma nova maneira de lutar pela sobrevivência. Com um novo modo de pregar o Evangelho e de acolher os desassistidos, esteve junto às famílias, uniu as pessoas que estavam separadas, construiu um ambiente de amor. Com seus gestos da não-violência e do exercício da partilha, Ibiapina trouxe uma nova forma de convivência entre os brutalizados pela miséria.
Ele foi um homem místico, silencioso, que andava pelas caatingas e brejos fazendo o bem, acolhendo órfãos. Com suas mãos de ternura acolhia famílias desoladas. Ibiapina foi um padre dos pobres, que abraçou os pobres.
Por muito tempo o clero não entendeu o papel missionário de Ibiapina. E ainda necessita beber na fonte de sua experiência missionária, que viveu no semiárido atingido pelas secas e pela violência climática e desumana.
Enquanto estava vivo, ele impunha um prestígio pessoal para construir suas casas de caridade e manter a sua obra de assistência às pessoas desassistidas, mas depois tudo isso desapareceu, porque bispos e padres, principalmente estes, não entenderam seu modo de colocar em prática o que está nos Evangelhos. Somente quase um século depois, seu papel começou a ser revisto. Dom Marcelo deu importante passo no sentido que a obra e a vida de Padre Ibiapina fossem revistas. A este vieram se juntar Dom José Maria Pires, Padre José Comblin, Padre José Floren, Padre Francisco Sadoc de Araujo, Padre Ernando Teixeira de Carvalho, Padre Gaspar Rafael Nunes da Costa e outros, que passaram a estudar a sua vida e tentar resgatar a sua obra missionária. O que tem sido muito importante para se redescobrir este missionário nordestino.
Muito me alegrou falar, hoje, deste servo bom e caridoso que a Paraíba acolheu, que a Igreja não descobriu em sua plenitude. Que o padre-mestre Ibiapina nos ilumine a seguir seus passos e imitá-lo.
Precisamos estudar sua história. Padre Ibiapina sempre será um modelo de padre para o futuro da Igreja, mesmo que, à sua época, tenha sido um missionário solitário.
José Nunes é Diácono, jornalista, integra a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, a Academia Cabedelense de Artes e Letras Litorânea, a União Brasileira de Escritores-Paraíba e a Associação Paraibana de Imprensa.